“Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçará a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertença” (Décimo Mandamento) (René Girard)
“O legislador que proíbe o desejo dos bens do próximo esforça-se por resolver o problema número um de qualquer comunidade humana: a viol~encia interna” (RG)
“O que o décimo mandamento esboça, sem o definir de maneira explícita, é uma “revolução copérnica” na inteligência do desejo. Julga-se que o desejo possa ser objectivo ou subjectivo, mas, na realidade, baseia-se num outro que valoriza os objectos, o terceiro que está mais perto, o próximo. Para se manter a paz entre os homens, há que definir a proibição em função desta atroz constatação: o próximo é o modelo dos nossos desejos. É a isto que chamo o desejo mimético.” (RG)
“Mesmo que o mimetismo do desejo humano seja o grande responsável das violências que nos oprimem, não se pode concluir que o desejo mimético é mau. Se os nossos desejos não fossem miméticos, fixar-se-iam para sempre em objectos predeterminados, seriam uma forma particular de instinto. Os homens não seriam capazes de mudar de desejo mais do que as vacas num prado. O desejo mimético é intrínsecamente bom.” (RG)
“O homem é uma criatura que perdeu uma parte de seu instinto animal para aceder àquilo que se chama desejo” (RG).
(Extratos do livro “Eu via Satanás cair do Céu como um raio”, de René Girard, Instituto Piaget.)
CONSTRUIR UM MUNDO A PARTIR DO ZERO É IMPOSSÍVEL
Os socialistas, assim como os nacional-socialistas, no campo da ideologia política aplicada, querem criar um mundo a partir do zero. Como se isso fosse possível. Definem uma data e decretam “a partir de agora está criada uma nova realidade, uma nova sociedade, uma nova cultura e um novo homem”. Quanta pretensão.
Tratando-se de ideologias com pretensões hegemônicas, não admitem divergências.
E, para implantar a “nova realidade” é preciso apresentar um pacote inteiro de “bondades”, isso inclui controlar a economia, a educação, a política, as artes, o pensamento e, portanto, a cultura. Uma tarefa hercúlea, impossível de ser realizada, obviamente.
Assim que, no entusiasmo inicial das revoluções, os artistas e intelectuais aplicam todo o seu vigor na construção do “novo mundo”. Mas o espírito humano é indomável e a imaginação surpreendente.
Mesmo no campo revolucionário há os que querem andar depressa demais, criando conflitos de toda ordem. Desse modo, o comando das revoluções fica retido entre o medo do retorno dos reacionários e a pressão pelo avanço dos mais revolucionários ainda.
Resulta que o mundo que surge do projeto revolucionário é um mundo insosso, sem graça, medroso, assombrado pelos fantasmas do passado e temeroso dos sinais do futuro.
Não há escapatória. Se observarmos os regimes revolucionários do Século XX, ficam sempre retidas as rédeas nas mesmas mãos, passando o poder de pais para filhos, de irmãos para irmãos.
O que isso tem a ver com a proposta socialista original? Nada, absolutamente nada. Mas faço a pergunta não por acreditar que aquela fosse possível e que houve um desvio, essa é a desculpa de sempre dos socialistas que custam a admitir essa realidade: os regimes socialistas acabam retrógrados e com aspecto de reinos, onde impera uma aristocracia burocrática de funcionários do partido, e uma aristocracia (nomenklatura), como a soviética.
De onde sairão os ricos, em uma nova ordem, quando a ditadura acabar. Previsível como o nascer do sol de amanhã. Para mim, as idéias socialistas só servem para funcionar como elemento de pressão, como forças de oposição, nunca para criar uma realidade concreta.
Quando aplicadas, criam uma camisa-de-força, amarram a realidade e matam a iniciativa humana. Os iluministas socialistas e seus irmãos nacional socialistas nunca foram muito bons em entender a Natureza Humana.
AS NAUS DOS FILÓSOFOS
Assim que aconteceu a revolução vermelha, de novembro de 1917, Lênim tirou a Rússia da Primeira Guerra Mundial e iniciou medidas drásticas para criar o novo mundo: estatizou a economia e confiscou bens privados. Os primeiros anos da revolução, apesar dos conflitos internos, atraiu a atenção do Mundo e dos revolucionários internacionais. Muitos foram à Rússia viver o momento glorioso.
Oberbuergermeister Hacken |
Mas a arte e os artistas são teimosos. Os intelectuais e filósofos são críticos demais, às vezes e, assim, em 1922 o clima entre o Poder e o mundo cultural não era muito bom.
A arte, na concepção socialista, deve servir ao povo. Mas como servir ao povo, na cabeça dos artistas, isso não é muito claro. Então alguém dita o que fazer. Sendo assim, estamos na ditadura. A arte foi usada como ferramenta de construção do “novo mundo”. Uma arte engessada nunca dá boa coisa. A arte precisa fluir livremente.
SMS Preussen |
No dia 28 de setembro de 1922 o vapor alemão Oberbuergermeister Hacken parte de Petrogrado levando para Stettin, Pomerânia (Alemanha/Polônia) uma carga incômoda: gente que pensa.
E gente que pensa com a própria cabeça. E isso é muito perturbador numa ditadura de partido único. A ditadura impõe uma idéia que deve ser absorvida. É uma igualdade que vem de fora,da cabeça dos políticos e burocratas, nunca fundada no desejo das pessoas.
Ninguém pode obrigar-nos a ser iguais uns aos outros. Precisamos querer ser iguais.
Em novembro parte o Preussen, com outra carga humana de dissidentes. Em 1923 os intelectuais, professores, filósofos são mandados embora de trem, até Riga, na Letônia, depois, mais trens, de Odessa (Ucrânia) a Constantinopla. Nem todos reacionários. Muitos revolucionários, mas todos queriam usar a própria cabeça.
Essa tensão é que move a cultura e a economia. Mas isso é ignorado pelos socialistas.
Voltamos a René Girad.
Imagina um estudioso dos processos fundadores da Cultura, o checo Ivan Bystrina, que
esta tem algumas raízes como: os sonhos, a morte, os estados alterados da consciência, os problemas psicopatológicos e os jogos (ver Roger Caillois e Huizinga). Entre os jogos está um muito importante, “Mimicry”, os jogos de imitação ou representação. Isso remete a Girard e aos desejos miméticos como uma das molas da cultura e da economia.
Os líderes comunistas chineses, embora ainda imaginando controlar a situação por tempo indefinido, parecem ter percebido, já em meados dos anos 70, pela aproximação aos Estados Unidos, e ao encerramento da fase terrível da revolução Cultural, que caminhariam para uma situação tão ruim quanto à da União Soviética, um grande cupineiro.
Grande por fora, oco por dentro.
Os chineses, sempre mais pragmáticos que os eslavos e russos, resolveram acionar as turbinas da indústria e da economia. Estamos vendo os resultados nos últimos dez anos.
Os chineses mimetizaram o ocidente em muitos aspectos, e a população chinesa quer mais. E somente isso poderá tirar mais gente do campo e da fome. Não há volta para a China. O custo seria alto demais, mesmo para quem tem 1,2 bilhão de habitantes.
Também George Simmel, o filósofo e sociólogo alemão, trata da questão do mimetismo em seus estudos sobre a Moda, desde o final do Século XIX (ver Modetheorie). Segundo Artur Morão, na introdução de Filosofia da Moda (Edições Texto & Grafia), “a sociedade não era, para ele um organismo coeso e unitário, de vibração homogênea ou de intencionalidades e finalidades comuns e harmonicamente compartilhadas... Constituía antes um emaranhado de múltiplas e díspares relações entre indivíduos, numa incessante interacção de uns com outros, inseridos, por seu turno, em estruturas superindividuais mais amplas (Estado, etc) que podem obter real autonomia e contrapor-se ao indivíduo como poderes estranhos e externos, simultaneamente tutelares e opressores.
Diz Simmel em Filosofia da Moda “Ela é a imitação de um modelo dado e satisfaz assim a necessidade de apoio social, conduz o indivíduo ao trilho que todos percorrem, fornece um universal, que faz do comportamento de cada indivíduo um simples exemplo. E satisfaz igualmente a necessidade de distinção, a tendência para a diferenciação, para mudar e se separar”. Aconselho a leitura de Simmel, a quem se interessar pelo tema. Sempre é tempo.
Então, o comportamento humano, embora de um ser gregário, que precisa do grupo, evoluiu para uma tensão entre o conjunto e a parte. O desejo mimético e o comportamento mimético operam nesse campo, mas isso nunca pode ser imposto, visto a particularidade apontada por Girard sobre não sermos apenas movidos pelo instinto, podendo alterar, então, nossos alvos miméticos.
Toda a economia moderna está baseada nesse mecanismo. Esse é o motivo do sucesso da Economia de Mercado. Ninguém inventou o mercado. Ele sempre foi. O homem sempre comerciou. Ao invés de, tratar o desejo mimético como intrinsecamente bom, os socialistas entenderam tudo ao contrario, e o tratam como intrinsecamente mau.
Quando interferem para “corrigir” a realidade social e a realidade humana, agem como esquartejadores ou açougueiros malucos. Nos arrancam pedaços, e querem fazer emendas, na falta de uma melhor compreensão do desejo mimético, para construir um novo ser. Mas, como construir um novo ser o atrofiando de suas diversas faculdades? Isso é coisa para o doutor Frankenstein.
No próximo texto, o desejo mimético e a dissidência nos regimes socialistas.
Imagens: Wikipedia.
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