Morreu hoje, aos 62 anos, aqui no Rio de Janeiro o jornalista José Meirelles Passos. Foi correspondente do jornal "O Globo", em Washington (EUA), por vinte anos. Trabalhou em Buenos Aires, Argentina, pela revista "Veja".
Estava internado no Hospital Samaritano, em Botafogo, na zona sul do Rio, onde lutava contra a doença desde 2010. Será enterrado às 17 horas, no Cemitério São João Batista.
Meirelles foi correspondente de o "Globo" em Washington por duas décadas. Voltou ao Brasil em 2009, quando tornou-se repórter especial de O Globo.
Participou de coberturas em mais de 40 países, cobrindo conflitos como a Guerra das Malvinas, as duas guerras de invasão do Iraque e a invasão do Panamá pelos Estados Unidos. Ganhou os prêmios Esso, Herzog e da SIP (Sociedade Interamericana da Imprensa), entre outros.
Escreveu "A noite dos generais: os bastidores do terror militar na Argentina", sobre o julgamento, em 1985, das três juntas militares que governaram a Argentina entre 1976 e 1982. "O livro é sobre esse lado que as reportagens não tinham como revelar, com os bastidores dos generais na prisão", disse Meirelles a respeito em uma entrevista para o site da ABI (Associação Brasileira da Imprensa).
Formou-se em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação de Santos (Unisantos), na turma de 1973, sendo colega de turma do fotógrafo Araquém Alcântara. Em Santos trabalhou no jornal Cidade de Santos e na sucursal de O Estado de São Paulo, dirigida, então, pelo jornalista José Rodrigues. De Santos foi para São Paulo, onde trabalhou em diversos veículos indo, depois, para a Argentina, por Veja, e dali para Washington por O Globo.
Desde jovem gostou de Literatura, especialmente a Latino-americana, o que lhe valeu na carreira jornalística, uma vez que sua primeira viagem internacional foi à Bolívia cobrir um golpe militar. Era o único jornalista, na redação com algum conhecimento do país, via Literatura. Daí para a carreira internacional foi um pulo.
Abaixo publico duas entrevistas com Meirelles. Uma em que é entrevistado pela ABI.
Outra em que entrevistou Jorge Luís Borges, o grande escritor argentino com quem fez amizade.
Entrevista com José Meirelles Passos - Artigos - Almanaque da Comunicação
Entrevista realizada por José Reinaldo Marques em 01/11/2006
Título: repórter mundo afora
Fonte: Site da ABI
Link: http://www.abi.org.br/paginaindividual.asp?id=1619
REPÓRTER MUNDO AFORA
Em janeiro de 2007, José Meirelles Passos completa 20 anos como correspondente internacional do Globo, nos Estados Unidos. O repórter mora em Washington e trabalha no escritório do jornal, a uma quadra da Casa Branca.
Por conta do jornalismo, Meirelles — que se formou em Santos-SP e já conheceu cerca de 39 países — fez sua estréia como correspondente viajando pela América Latina, quando trabalhava na IstoÉ. Em seguida, foi convidado pela Veja para ser correspondente em Buenos Aires. Nesse período, o único país que não visitou foi o Equador — “uma lacuna que dia desses, quem sabe, eu preencho”, diz.
Aqui, ele conta como começou o seu interesse pelo noticiário internacional e por que a reportagem é sua área preferida dentro do jornalismo, “seja qual for o assunto”.
ABI Online — Quando você decidiu que seria jornalista?
José Meirelles Passos — Cedo, ainda no ginásio, talvez pelo gosto da leitura. Meu pai tinha muitos livros, assinava jornais, era um bom contador de histórias. Isso tudo certamente influenciou. Na escola primária, eu gostava das aulas de Redação. A professora dava um tema e a gente tinha de escrever a respeito. Eram coisas do tipo “O último fim de semana”, “O quintal de minha casa”. Quer dizer: na prática você tinha que escrever um relato informativo, uma espécie de reportagem. Às vezes acontecia uma coisa chamada de “Composição à vista de uma gravura”. Ela colocava uma pintura ou fotografia lá na frente da sala e tínhamos de escrever a respeito, entrar na cena, descrevê-la, contar uma história tendo aquilo como pano de fundo.
ABI Online — Você se sente gratificado com a escolha?
Meirelles — Muito! É o que eu mais gosto de fazer. É um trabalho que me dá prazer, que me ensina algo todos os dias. Ele me dá chances de ver a História de perto, de registrá-la, de aprender a viver. A profissão me leva a conhecer o mundo, algumas vezes do lado do avesso.
ABI Online — Costuma haver uma matéria marcante no início da carreira dos repórteres. Você tem alguma?
Meirelles — Ah, foram tantas... Nenhuma de grande destaque, mas muitas pequenas e interessantes histórias do cotidiano.
ABI Online — E o golpe militar na Bolívia, em 81?
Meirelles — Foi uma experiência muito doida. Eu era correspondente da IstoÉ e conheci um Deputado boliviano cassado, que vivia em São Paulo. Telefonei para ele e disse que numa sexta-feira estaria embarcando para Santa Cruz de La Sierra, para apurar o envolvimento do governo Garcia Meza com o tráfico de drogas. Ele pediu que eu fosse ao seu encontro e me contou que, no sábado, haveria um golpe comandado pelo General Natush Bush, além de me dar uma carta, dizendo que eu a apresentasse no quartel para ter passe livre.
ABI Online — E funcionou?
Meirelles — Sim. Quando cheguei, mostrei os documentos e os caras me deram um salvo-conduto. Disseram: “Amanhã, às 5h, vamos botar os tanques nas ruas, dar uns tiros para o alto e ocupar o aeroporto.” E garantiram que, com aquele documento, eu não teria problemas. Resultado: vi esse golpe de dentro, pois passei um dia no quartel. Os outros correspondentes não tinham como sair de La Paz para Santa Cruz de La Sierra, eu era o único jornalista estrangeiro na cidade. Para transmitir o telex com a matéria (na época não havia e-mail), tive que ir ao escritório de uma empresa norte-americana. Foi um barato.
ABI Online — Antes de ingressar no Globo, onde você trabalhou?
Meirelles — Iniciei a carreira no Cidade de Santos, jornal vinculado à Folha de S. Paulo. Depois, fui trabalhar na sucursal santista do Estadão, passei a colaborar com o Movimento, e começaram a surgir uns frilas para a IstoÉ, nos seus bons tempos. Quando Mino Carta criou o Jornal da República, veio o convite para ir para a capital paulista. O jornal durou só quatro meses, mas sobrevivi. Mino me convidou para ficar na IstoÉ, na qual fui repórter de todas as áreas, o que me preparou ainda mais para a vida futura de correspondente internacional — que, aliás, começou na revista, com a cobertura de outro golpe na Bolívia, em julho de 1980. Passei a cobrir América Latina, residindo em São Paulo e viajando pelos países vizinhos.
ABI Online — Em meados dos anos 80, você também foi correspondente da Veja na Argentina.
Meirelles — Recebi convite da Veja para ser correspondente em Buenos Aires, onde cheguei em janeiro de 1984. Dois anos e meio depois, passei para O Globo, ainda na capital argentina. Seis meses mais tarde o jornal me transferiu para Washington, onde, em janeiro do ano que vem, vou completar 20 anos de trabalho.
ABI Online — Teve algum problema de adaptação nos Estados Unidos?
Meirelles — Não há grandes diferenças, mas a questão das facilidades e dificuldades, de acesso a fontes e, é claro, de comunicação. Transmitir uma matéria ou fotografia, nos EUA, mesmo estando no interiorzão, é bem mais fácil do que no interior — às vezes até mesmo numa capital — da América Latina.
ABI Online — Você costuma se autodefinir como um repórter que gosta das matérias que exigem fôlego e investigação. É sua principal característica profissional?
Meirelles — Acho que seria mais estar sempre atento, ser curioso, ouvir mais do que falar e observar com determinação. As matérias de maior fôlego, sem dúvida, são mais gratificantes. Exigem, sobretudo, pesquisa prévia respeito e, depois, tenacidade. O rótulo “investigação” me incomoda um pouco, no sentido de que hoje isso parece ser encarado como uma especialidade desse ofício quando, na verdade, todo jornalismo deve ser investigativo por definição — como bem diz um dos mais notáveis repórteres veteranos, Gabriel García Márquez.
ABI Online — A reportagem sempre foi seu maior interesse?
Meirelles — Sem dúvida alguma, seja qual for o assunto. É claro que há temas que apreciamos mais, em que trafegamos melhor. Mas estou aberto a tudo. Costumo dizer que leio com atenção até bula de remédio, em busca de dicas, idéias, inspiração. Talvez seja um vício trabalhista. É que sempre há algo que dá uma boa matéria, não é mesmo? Até uma frase ouvida no metrô, no botequim...
ABI Online — Qual é a fase mais interessante da reportagem?
Meirelles — Não separo uma coisa da outra. São três fases distintas: o chamado “dever de casa”, que é a preparação para mergulhar num determinado assunto, seguido da apuração e, então, da elaboração do texto. Ouço com freqüência colegas dizendo “agora chegou a pior parte”, diante do teclado. Há um costume que vem da época das máquinas de escrever, mas que perdura mesmo na geração que iniciou a profissão já nos computadores, e que de certa forma reflete isso: as pessoas dizem que vão “bater a matéria”. Costumo dizer que não bato, mas escrevo matérias — e acho que nisso está uma diferença clara. Vejo gente ligando o piloto automático na hora de escrever, mas acho errado. Cada história é uma história, por menor que seja, por mais desinteressante ou corriqueiro que seja o assunto. É preciso respeitar o leitor e o próprio ofício.
ABI Online — O que ser correspondente significou em termos de oportunidades?
Meirelles — Aprender outros idiomas, viajar, penetrar em outros mundos, conhecer in loco outras culturas. Isso foi me fascinando aos poucos. Até aqui, já foram 39 países percorridos a trabalho. Nota-se que faltam muitos mais, não é? No fundo, a carreira de correspondente internacional cristalizou algo surgido no início, que era o papel de repórter-faz-tudo. Prefiro não me especializar. Gosto do desafio de estar pronto para o que der e vier. Exige muito esforço, leitura, atenção. E viver intensamente.
ABI Online — Quantas viagens costuma fazer por ano em busca de boas reportagens?
Meirelles — Menos do que eu gostaria. Os EUA são um país grande. Já fui a muitas partes aqui, mas falta muito por conhecer. Ao mesmo tempo, não posso reclamar muito, porque Washington acabou servindo de trampolim para reportagens, por exemplo, em Dubai, Bangkok, Berlim, Paris, Hong Kong, Taipei, Bagdá, Cairo, Bogotá, Caracas, Ilhas Caiman, Teerã, Moscou, Havana.
ABI Online — Alguma vez você foi criticado no exterior por causa de alguma reportagem?
Meirelles — Criticado, não. Vigiado, sim. No Uruguai, na Argentina, no Chile, durante os anos negros das ditaduras militares, algumas vezes sofri pressões — digamos, morais — por algo que tinha escrito e, pior, por algo que ainda não tinha escrito — ou seja, tinha impedido o acesso à informação. No Iraque, na época do Saddam Hussein, jornalista não podia circular sem a companhia de um funcionário do Ministério do Interior, um espião do governo. No Irã é a mesma coisa.
ABI Online — Das grandes personalidades mundiais que você entrevistou qual mais o impressionou?
Meirelles — Três escritores: Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Gabriel García Márquez, sendo que, com este último, não houve uma entrevista formal, coisa que ele detesta, mas quatro conversas breves, em meio a eventos dos quais ele participava, em quatro países distintos: Colômbia (Cartagena de Índias), EUA (Washington), Cuba (Havana) e França (Paris). Outro bom papo foi com Woody Allen.
ABI Online — Como se constrói uma carreira consistente como correspondente internacional?
Meirelles — Acho essencial ter uma base sólida sobre o seu próprio país. E não apenas uma base teórica, mas também de prática jornalística, de trabalho de rua. Tive a sorte de ter sido repórter de Polícia, de Esportes, de Porto (lá em Santos era uma área específica, dentro da Economia), de Política (e isso na época da ditadura militar), de variedades... É preciso, ainda, ter uma boa idéia de como funciona o meio, ter noção de fechamento, de todo o processo, pois fazemos um trabalho em equipe e é crucial para o bom andamento das coisas estar sintonizado, saber as necessidades e dificuldades de cada setor, para fazer a máquina andar bem azeitada. Residir num país e escrever para outro é um grande desafio.
ABI Online — Como assim?
Meirelles — É preciso não deixar romper o cordão umbilical, tanto em termos de informação (coisas que estão acontecendo no seu país de origem) quanto em termos de linguagem. Há coisas que deixam de ser interessantes para os leitores do seu país e outras que interessam e para você são corriqueiras, sem importância. É importante estar ligado nisso e, sobretudo, conhecer o perfil do leitor, que é o seu verdadeiro patrão. Hoje todos os grandes veículos têm uma boa idéia disso.
ABI Online — O trabalho dos correspondentes brasileiros é bem utilizado pela mídia nacional?
Meirelles — É difícil generalizar, desconhecendo os bastidores dos demais, embora conversemos entre nós. O que vejo, basicamente, levando em conta o investimento feito neles, é que muitas vezes os correspondentes são usados mais como redatores de luxo, cobrindo buracos na redação, por falta de pessoal. Deveríamos ter a chance de investir mais em matérias próprias, sem concorrer com as agências de notícias. Os grandes jornais contam com o serviço de várias delas, além de dispor do material de pelo menos dois grandes jornais estrangeiros. Por que, então, o correspondente tem de entrar num assunto que já rola nesses meios?
ABI Online — Qual seria a saída?
Meirelles — Seria conveniente que os correspondentes atuais pudessem trabalhar como os de décadas atrás, quando não existia internet e o acesso a outros meios era remoto: investir em histórias próprias, gastar sola de sapato. Mas é claro que há fatos que devem ser cobertos pelo profissional da casa, mesmo havendo abundância de informações de outras fontes, por uma questão de prestígio do próprio jornal. Matérias, por exemplo, sobre a morte ou eleição de um papa, tragédias, eleições presidenciais. Sem contar que precisamos ter sempre o “olhar brasileiro” sobre os eventos.
ABI Online — Gostaria que você falasse sobre “A noite dos generais: os bastidores do terror militar na Argentina”.
Meirelles — É um livro sobre o julgamento, em 1985, das três juntas militares que governaram a Argentina de 76 a 82. Passei oito meses indo ao Tribunal. Também tive acesso à transcrição dos depoimentos dos militares acusados e reparei que as histórias se repetiam. Fiz contato com familiares, entrevistei várias pessoas. O livro é sobre esse lado que as reportagens não tinham como revelar, com os bastidores dos generais na prisão.
ABI Online — Já pensou em escrever novamente sobre episódios que não couberam em outras reportagens?
Meirelles — Às vezes me vem essa idéia, que acaba sendo abafada pela falta de tempo. Como se costuma dizer, as notícias que interessam começam em Washington ou passam por aqui. Estamos sempre trabalhando — e com tantos temas que fica difícil pinçar um para investir a fundo, num livro. Seja como for, ando pensando em reunir reportagens num volume, coisas já publicadas, mas com um toque a mais.
ABI Online — Que toque a mais você daria?
Meirelles — Explico: das coisas que mais me interessaram, sempre guardei as anotações. Em jornal, o espaço costuma ser restrito, mesmo nas edições de domingo. Gostaria, portanto, de revisitar algumas reportagens, ampliando-as. São temas, pessoas, histórias que não perdem a atualidade. E que, no fundo, não foram exploradas — quero dizer, exibidas — em sua totalidade.
ABI Online — Cite uma.
Meirelles — Ih, isso é como perguntar “de qual das suas filhas você mais gosta”. Só da cobertura nas guerras do Iraque (1991 e 2003) há várias, sem os efeitos pirotécnicos, centradas no que, na profissão, nos habituamos a definir como “o lado humano”. Uma cobertura que gostei muito de fazer foi a da morte de Kurt Cobain, do Nirvana. Passei uma semana em Seattle e arredores, conversando com meio mundo: a mãe dele, colegas de escola, garçonetes de um boteco onde ele começara a carreira, professores. Era uma radiografia da vida do roqueiro, com detalhes que de alguma forma explicavam o que o levou a um triste fim.
ABI Online — Gostaria que você apontasse os erros e acertos da imprensa nos países em que trabalhou.
Meirelles — Caramba, isso é amplo demais. Fiquemos nos dois lugares de residência: Argentina e Estados Unidos. Eu achava, e continuo achando, a imprensa argentina meio provinciana. Na época em que morei lá (segunda metade dos anos 80), os dois principais jornais, La Nación e Clarín, tinham correspondentes apenas na Espanha, pois é, a mãe pátria. Era como se o Brasil só tivesse correspondentes em Portugal. Hoje eles estão mais... moderninhos. Outra coisa que acabou, até onde sei, é a profissionalização do ofício, se é que se pode dizer assim com referência ao aspecto que quero mencionar. Seguinte: jornais e revistas argentinos costumavam publicar fotos de seus repórteres entrevistando ministros, artistas, jogadores de futebol, como se tivessem a necessidade de provar ao leitor que o jornalista de fato conversou com o personagem. E isso, no fim, acabou virando um culto à imagem dos profissionais, como acontece hoje em geral, em todos os países, em relação aos colegas que aparecem na TV.
ABI Online — Qual é a sua impressão sobre as tentativas do Presidente Bush de controlar os meios de comunicação?
Meirelles — Um atraso, uma regressão inacreditável. Entende-se perfeitamente o motivo disso, mas é inaceitável. O pior é que muitos colegas e veículos norte-americanos acabam aceitando isso. Eles têm fama cinematográfica de liberdade, rebeldia, de paladinos da verdade. Mas abaixam muito a cabeça perante o Governo. Hoje, só o põem contra a parede quando a situação está reconhecidamente ruim para o país, como é o caso agora com a crescente “conscientização” de que os EUA deram com os burros n’água no Iraque. Agora todo mundo (leia-se a imprensa norte-americana em geral) chuta cachorro morto. Basta reler os jornais e revistas da época pré-invasão para ver que raríssimas vozes se levantaram contra nos meios de comunicação.
ABI Online — Jornais como Miami Herald e The New York Times tiveram, recentemente, problemas com reportagens fraudulentas. Esses episódios afetaram a credibilidade da imprensa norte-americana?
Meirelles — Sem dúvida. Hoje existe uma desconfiança muito grande em relação ao que é publicado.
ABI Online — Na Bolívia, o Presidente Evo Morales reclama que os jornalistas locais lhe dão tratamento preconceituoso. A reclamação procede?
Meirelles — É claro que há uma ponta de preconceito nisso. Não precisamos ir aos Andes para notar isso; vê-se algo do gênero também com relação ao Lula, no Brasil.
ABI Online — Por sua vez, Hugo Chavez, da Venezuela, acusa a CNN de mentir a seu respeito. Ele é discriminado pela imprensa norte-americana?
Meirelles — Não chega a ser discriminado, mas é visto com enorme desconfiança. O problema é que ele cada dia mais se auto-ridiculariza. O papelão que fez na ONU recentemente, chamando Bush de diabo, dizendo que ainda sentia o cheiro de enxofre (Bush tinha estado no mesmo pódio na véspera) e fazendo o sinal da cruz, foi no mínimo o desperdício de uma ótima oportunidade de dar um recado contundente, de expor idéias. A vitrine era dele e foi, simplesmente, por ele destroçada.
ABI Online — Quais são os temas de maior destaque sobre as sociedades sul-americanas na mídia estadunidense?
Meirelles — A imigração ilegal é o carro-chefe, seguida do narcotráfico.
ABI Online — Por que você veio ao País cobrir o primeiro turno das eleições?
Meirelles — Para recarregar as baterias, por assim dizer. Para retomar o contato direto com o Brasil, ajudar no grande esforço de cobertura feito pelo Globo e, eventualmente, contribuir com uma espécie de olhar estrangeiro sobre o País, em geral, e a campanha no Rio, em particular. Um olhar estrangeiro com raízes legitimamente nacionais. E não podia ter sido melhor. Tive a chance, entre outras coisas, de entrar na favela da Rocinha, de visitar a Baixada Fluminense, de ir ao sertão de Alagoas... um banho de Brasil.
ABI Online — A imprensa nacional fez uma boa cobertura do processo eleitoral?
Meirelles — Muito boa. Não devemos nada a ninguém, do ponto de vista do exercício da profissão. Marcação em cima, exageros à parte. Determinação. Trabalho duro. Dedicação. Redações com pouca gente fazendo das tripas coração para apresentar um retrato verossímil do que estava acontecendo.
ABI Online — Uma reportagem da Carta Capital indica que houve conivência de jornalistas com um Delegado da Polícia Federal no escândalo do dossiê. Você tem uma opinião sobre o episódio?
Meirelles — Apenas li a respeito. Fico com a impressão, em relação a esse e outros casos, de que sofremos (jornais e revistas) uma “síndrome da internet”. Ou seja: uma preocupação em colocar logo nas ruas fatos que não chegamos a averiguar adequadamente. Aí surgem os desmentidos, comprovam-se falhas, surgem versões mais fantasiosas, e acaba tudo virando um tiroteio que, no fim das contas, é uma ameaça à credibilidade da imprensa.
ABI Online — Qual é a sua visão sobre o desempenho da mídia nos últimos 20 anos?
Meirelles — Referindo-me à mídia de todo o mundo, e não apenas à brasileira, creio que tem sido bom, ainda que nos últimos tempos haja uma forte tendência de transformar a notícia em entretenimento, ou dar mais espaço às notícias dessa área. Tudo vira show. Também me preocupa os jornalistas estarem se transformando em notícia, tendo mais notoriedade do que a própria informação. Veja o caso específico dos blogs: eles estão virando diários íntimos, com muito comentário, muito “eu-acho-que” e pouca informação.
ABI Online — Se você tivesse que eleger um veículo e um profissional internacionais pela qualidade da produção jornalística, quais seriam?
Meirelles — Mais de um. Acho que o New York Times é um produto de alta qualidade, entre os jornalões. Nas revistas semanais, The Economist bate todas do gênero e, num aspecto mais amplo, a New Yorker é um luxo. Quanto ao jornalista, também fico no plural: John Burns, atualmente chefe da sucursal do New York Times em Bagdá; e Jon Lee Anderson, repórter da New Yorker.
JOSÉ MEIRELLES PASSOS E BORGES
17 vezes Borges
A estreita relação e os encontros informais entre o jornalista brasileiro e o escritor argentino durante os cinco anos que antecederam sua morte
Por José Meirelles Passos
Foto: Valéria Rehder
Meirelles, hoje correspondente de O Globo em Washington, entrevista Borges em 1980
17 vezes Borges
Incrustada na porta de madeira do apartamento 6-B, num antigo edifício da Calle Maipú, em Buenos Aires, a pequena placa dourada continha, em preto, uma palavra que identificava o seu morador: "Borges".
Logo depois de tocar a porta, os visitantes tinham uma surpresa. Ela era aberta pelo próprio Jorge Luís Borges, apoiado em sua bengala chinesa de bambu, a sua favorita:
- A minha governanta é um pouco surda... não ouve quem chega. Eu não enxergo, mas escuto bem - disse ele, com um sorriso irônico ao me receber na primeira vez que o visitei, em setembro de 1980. A cena se repetiria outras 16 vezes nos cinco anos seguintes, então já sem necessidade da explicação, e tornou-se uma espécie de ritual.
A porta se abria, nos cumprimentávamos e ele, então, dizia: "Ah, é o brasileiro...", e, depois de se acomodar no sofá de tecido verde na pequena sala de estar com duas paredes cobertas por livros, perguntava:
- E então, quais são as novidades da rua? Solitário, Borges gostava de visitas. Ele não possuía televisão nem rádio, tampouco um toca-discos. Bastava telefonar para ele e perguntar quando poderia conversar. Uma ou outra vez foi para entrevista formal. A maior parte das vezes foi pelo simples prazer da conversa.
- Se puder ser daqui a pouco... Ou quem sabe no início da tarde - ele dizia, ávido por uma companhia.
- Vivo a monótona vida de um velho cego que já deveria ter morrido - costumava justificar. Borges atenuava a solidão criando contos e guardando-os na memória prodigiosa até que aparecesse um amigo para ouvir e transcrever, à máquina, o ditado de suas histórias. Ele não parecia triste. Melancólico, sim. Dizia não ter medo de morrer. Isso, afinal, seria o fim da solidão:
- Estou um pouco cansado... gostaria de morrer o mais rápido possível - disse-me em várias ocasiões.
A sua fascinação por facas o fazia repetir, como quem conta um conto, o relato de brigas entre gaúchos que teria presenciado na juventude. Brigas de faca. Era difícil distinguir entre realidade e ficção, ao ouvi-lo contá-las. A cegueira era outro tema constante, espontâneo. Borges dizia estar conformado com ela, assim como com a velhice e a ausência de amigos - quase todos já mortos, então:
- Já com idade avançada aprendi a resignação de ser Borges... Ele não fumava. Tampouco bebia. Contava não ter se dado bem com as drogas: - Com a cocaína ensaiei três vezes seguidas e me pareceu uma pastilha de menta. Acho que o mesmo aconteceria com a maconha e as demais drogas. O que se passa é que as pessoas se dão corda... Gostava de caminhar de manhã sob as árvores da Plaza San Martin, à meia quadra de seu apartamento, sempre de terno e gravata. Comia pouco. Ir ao cinema parecia ser a sua diversão preferida:
- Ver, no meu caso, é uma metáfora. Mas continuo indo ao cinema para ouvir os diálogos.
Achava-se o homem mais banal do mundo, que vivia frugalmente com uma pensão de funcionário público e direitos autorais que pingavam aos poucos. Escrever era a sua sina:
- Um destino literário não seria o melhor, mas o único possível para mim. E... o que pode fazer um cego, senão escrever? Creio que não perdi a capacidade de continuar sonhando e, assim, continuo escrevendo contos e poesias.
Importante? Não, jamais se sentiu assim. Celebridade? Muito menos. Chegava a ser amargo e cruel consigo mesmo:
- Sou um mero literato da república meramente argentina! - dizia enfaticamente.
Afirmava que seus livros eram apenas variações parciais de si mesmo:
- Eles são o recurso clássico da irreparável monotonia. Um exercício de cego.
Certa vez lhe perguntei quem, afinal, era Borges. Depois de pensar longamente ele abriu um sorriso maroto, e balbuciou:
- Ah, meu filho... isso eu ainda estou tratando de averiguar. Às vezes eu mesmo me sinto farto de Borges. Ele passou as últimas duas décadas de sua vida convencido de que a sua fama se devia mais à piedade do que ao seu talento literário:
- Me aplaudem em Tandil (cidade do interior da Argentina) e em Nova York; mas... quem não aplaude um velho cego, não é mesmo? Criticado por ter defendido as juntas militares, ele tinha uma definição muito peculiar sobre a vida política:
- A democracia, como se sabe, é uma superstição baseada na estatística.
Um dos momentos mais sublimes nos encontros vespertinos que tivemos, a maioria deles por conta apenas de uma boa conversa - não se tratavam de entrevistas formais -, aconteceu quando voltando, pela enésima vez, à questão da cegueira, Borges contou que se sentia resignado a ela sobretudo porque um velho amigo sofria do mesmo mal e, segundo ele, tinha uma existência mais sofrida que a sua. E explicou:
- Enquanto eu ainda consigo ver sombras e vultos amarelados, ele os vê cinzas - disse.
Ingênuo, perguntei que diferença fazia isso se, afinal, nenhum dos dois enxergava. Por que o amigo teria
uma vida mais dura que a dele, devido a essa diferença de cor? E Borges, sorrindo gostosamente como quem acabara de pregar uma peça em alguém, respondeu:
- Ah, meu filho... você já pensou o que é beijar lábios cinzas?
* Jorge Luís Borges morreu em Genebra, em 14 de junho de 1986. Ele nasceu em 24 de agosto de 1899, em Buenos Aires.
FOTO DE BORGES E MEIRELLES: VALÉRIA REHDER
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