As crianças de Atenas
João Pereira Coutinho
Estive em Atenas uma única vez na vida. Fui roubado. Literalmente. Verdade que também fui roubado no Brasil, na Espanha e no Egito. Desconfio que deve existir uma organização criminosa internacional que entra em alerta máxima sempre que eu me preparo para viajar. "Atenção: otário em movimento. Ataquem".
Mas o roubo em Atenas foi diferente. Foi, digamos, indolor: não houve armas (como no Brasil), não houve vidro do carro partido (como em Espanha) e não houve coação física (como no Egito). Depois de um jantar a dois passos da praça Syntagma (a única praça da capital grega que parece civilizada), lancei a mão à carteira e descobri o bolso do casaco vazio. Passei os oito dias seguintes (quatro em Atenas, quatro nas ilhas) com dinheiro emprestado e uma garrafa diária de retsina.
Lembro tudo isso porque a Grécia voltou a ocupar os noticiários. Alguns dias atrás, a polícia matou um rapaz de 15 anos. Nas duas semanas que se seguiram, jovens descontentes com o estado do mundo e com o estado da Grécia resolveram "vingar" a morte do companheiro e verter a raiva incontida em lojas, carros e policiais. Diz a imprensa que os prejuízos rondam os 130 milhões de dólares e, pior, estão longe de acabar: resguardados no Politécnico de Atenas, espaço onde a polícia não entra por determinação constitucional (os estudantes tiveram papel heróico no derrube da ditadura e isso garante-lhes certas prerrogativas espaciais), eles transformaram o Politécnico em "embaixada" e aí preparam as bombas que lançam quando a noite cai. Perfeito.
Os especialistas explicam o drama. E afirmam, inteiramente a sério, que existem "razões" ponderosas para deitar fogo à cidade. A corrupção do governo; a mediocridade do seu sistema de ensino; uma taxa de desemprego próxima dos dois dígitos --tudo isso ajuda à festa dos bárbaros. E depois temos a terrível "globalização", esse velho fantasma das cabeças primitivas, que transporta no seu dorso a crise financeira mundial.
Não acreditem nessas rábulas: a Grécia é um parceiro respeitável da União Européia e o governo de Atenas não se distingue particularmente dos governos burocráticos da União, que ratificam o que Bruxelas decide.
O problema está numa geração que nasceu e cresceu à sombra do Estado de Bem Estar Social, essa herança da Grande Depressão que o fim da Segunda Guerra tornou praticamente universal. Um Estado que vela pelos seus cidadãos do berço até à cova e que, precisamente por isso, os infantiliza durante uma vida inteira.
Quando vejo os pequenos selvagens da Grécia, é impossível não perceber o drama central desses meninos: habituados ao conforto e à segurança de um Estado que os trata como menores, eles continuam a esperar da entidade paternal o manto protetor das suas existências: no ensino, na saúde, no trabalho, na habitação, no consumo, na educação dos filhos e até, quem sabe, no fabrico deles. Inevitável: educados na dependência, eles não se distinguem dos mais básicos dependentes.
Infelizmente para eles, para a Grécia e para a Europa, o pai dá sinais de falência e os filhos terão que procurar a sopa noutras panelas. A violência de Atenas, que a prazo se espalhará pelas restantes cidades do continente, faz parte do processo. Crescer dói.
Artigo originalmente publicado na Folha Online.Mas o roubo em Atenas foi diferente. Foi, digamos, indolor: não houve armas (como no Brasil), não houve vidro do carro partido (como em Espanha) e não houve coação física (como no Egito). Depois de um jantar a dois passos da praça Syntagma (a única praça da capital grega que parece civilizada), lancei a mão à carteira e descobri o bolso do casaco vazio. Passei os oito dias seguintes (quatro em Atenas, quatro nas ilhas) com dinheiro emprestado e uma garrafa diária de retsina.
Lembro tudo isso porque a Grécia voltou a ocupar os noticiários. Alguns dias atrás, a polícia matou um rapaz de 15 anos. Nas duas semanas que se seguiram, jovens descontentes com o estado do mundo e com o estado da Grécia resolveram "vingar" a morte do companheiro e verter a raiva incontida em lojas, carros e policiais. Diz a imprensa que os prejuízos rondam os 130 milhões de dólares e, pior, estão longe de acabar: resguardados no Politécnico de Atenas, espaço onde a polícia não entra por determinação constitucional (os estudantes tiveram papel heróico no derrube da ditadura e isso garante-lhes certas prerrogativas espaciais), eles transformaram o Politécnico em "embaixada" e aí preparam as bombas que lançam quando a noite cai. Perfeito.
Os especialistas explicam o drama. E afirmam, inteiramente a sério, que existem "razões" ponderosas para deitar fogo à cidade. A corrupção do governo; a mediocridade do seu sistema de ensino; uma taxa de desemprego próxima dos dois dígitos --tudo isso ajuda à festa dos bárbaros. E depois temos a terrível "globalização", esse velho fantasma das cabeças primitivas, que transporta no seu dorso a crise financeira mundial.
Não acreditem nessas rábulas: a Grécia é um parceiro respeitável da União Européia e o governo de Atenas não se distingue particularmente dos governos burocráticos da União, que ratificam o que Bruxelas decide.
O problema está numa geração que nasceu e cresceu à sombra do Estado de Bem Estar Social, essa herança da Grande Depressão que o fim da Segunda Guerra tornou praticamente universal. Um Estado que vela pelos seus cidadãos do berço até à cova e que, precisamente por isso, os infantiliza durante uma vida inteira.
Quando vejo os pequenos selvagens da Grécia, é impossível não perceber o drama central desses meninos: habituados ao conforto e à segurança de um Estado que os trata como menores, eles continuam a esperar da entidade paternal o manto protetor das suas existências: no ensino, na saúde, no trabalho, na habitação, no consumo, na educação dos filhos e até, quem sabe, no fabrico deles. Inevitável: educados na dependência, eles não se distinguem dos mais básicos dependentes.
Infelizmente para eles, para a Grécia e para a Europa, o pai dá sinais de falência e os filhos terão que procurar a sopa noutras panelas. A violência de Atenas, que a prazo se espalhará pelas restantes cidades do continente, faz parte do processo. Crescer dói.
João Pereira Coutinho
18/12/2008
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