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quarta-feira, 30 de março de 2011

USO DE DROGA. CRIME? CASTIGO?

Agradeço ao Promotor de Justiça, doutor Charles Emil Machado Martins, Professor de Direito Processual Penal na FESMP-RS e UNISINOS a autorização para publicação de seu artigo, publicado originalmente no

Uso de droga

 Crime? Castigo?

Elaborado em 02/2009.
Charles Emil Machado Martins

Justificativa
A drogadição (uso indevido de drogas), de um modo especial no mundo ocidental, é um dos temas mais polêmicos da conteporaneidade, tratando-se de fenômeno complexo que tende a ser abordado de forma predominantemente emocional, nomeadamente em virtude da faticidade de cada intérprete (que percebe o fenômeno de uma forma distinta, dependendo da história de sua vida e das suas circunstâncias). Imperativo, portanto, que para melhor compreendê-lo haja o esforço de um distanciamento científico, preferencialmente acoplado a uma visão holística e sistêmica (multidisciplinar), na medida em que, para além da legalidade, o assunto confronta aspectos éticos, culturais, sanitários, políticos, econômicos e etc., nem sempre tornados claros, quer pelo discurso do establishment, que costuma "endemonizar" as drogas, quer pelo encanto poético da contracultura, com a sua tendência de glamourizar o uso, relegando ao olvido os sérios riscos da adição a drogas .
Entretanto, dentro de todo o universo possível de abordagem sobre as drogas, enfoca as estratégias utilizadas pelo legislador brasileiro no trato da matéria, em especial na ótica criminal.
Nessa esteira, em um primeiro momento, da forma mais objetiva possível, revistar-se-á o caminho seguido pela legislação criminal pátria, mencionando os contrapontos que lhe foram feitos por determinados seguimentos da doutrina e jurisprudência indígenas, destacando, todavia, o respaldo que o legislador sempre obteve, ao menos na espécie delitiva em comento, da interpretação emanada dos nossos tribunais superiores.
Logo em seguida, será feita uma análise crítica da lei antidrogas vigente, destacando suas incongruências e a sua titubeante proposta de incriminar o porte para uso pessoal, reveladora, das duas uma, ou de um Poder Legislativo descuidado com a complexa vexata quaestio da drogadição; ou, o que é pior, de um legislador que, de forma hipócrita e simplista, lança mãos do malsinado Direito Penal simbólico "latente" para ocultar o seu propósito de descriminalizar essa prática. [01]
Por derradeiro, ainda que de relancina, será feita uma abordagem dos principais argumentos abolicionistas e proibicionistas, com destaque para a alternativa engendrada pela legislação portuguesa, a qual, conquanto mereça lá alguns reparos, descortina-se como fonte inspiradora em que o legislador brasileiro poderá vir a se abeberar para tratar do intricado tema.

A legislação antecedente e a sua interpretação jurisprudencial.

Em virtude dos estreitos limites dessa quadra, deixar-se-á de lado os diplomas legais mais antigos, [02] partindo-se da redação original do Decreto-lei 2.848/40 (CP), na qual não constava incriminação do porte de drogas para consumo pessoal, pois tipificava somente o tráfico (art. 281).
Somente na década de 60, com a profusão mundial do consumo, o Decreto-lei 385/1968 alterou o art. 281 do CP, equiparando, em termos de penalização, a conduta de trazer consigo para uso próprio ao tráfico. A justificativa apresentada, à época, apontava justamente para o aumento da venda e a impunidade dos traficantes que, surpreendidos com drogas proibidas, diziam-se meros usuários.
Posteriormente, o disposto no art. 281 do CP foi revogado pela Lei 5.726/71, nossa primeira "lei antitóxicos" (LAT), [03] que justamente procurou enfrentar a, por vezes, tormentosa dificuldade de enquadramento entre tráfico e uso, dando um tratamento mais benigno a esta conduta. Essa lei trouxe várias inovações, exacerbando as hipóteses de condutas delituosas, inclusive a associação para o tráfico, e instituindo procedimentos especiais.
Tal diploma legal foi revogado pela Lei 6.368/1976, que dispunha "sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências". Essa lei, regulamentada pelo Decreto nº 78.992/1976, foi considerada um avanço em relação a anterior, pois abordou a questão do tratamento e recuperação do usuário.
Na Lei nº 6.368/1976, a conduta do porte para consumo pessoal era considerada crime. [04] Entretanto, o dependente de drogas passou a ter tratamento diverso, ficando isento de pena, caso reconhecida sua inimputabilidade. [05] Portanto, a lei fazia nítida distinção entre traficante (art. 12), usuário (art. 16) e dependente (art. 19). [06] Logo assim, o dependente, segundo majoritária corrente doutrinária, poderia, inclusive, ser reconhecido como um não criminoso, dado o conceito analítico de crime que os adeptos dessa corrente adotam. [07] Nada obstante, o notável avanço dessa diferenciação, ela não restou imune a críticas. [08]
Interessante observar, igualmente, que embora o art. 16 tenha sido consagrado como sendo o artigo do usuário, o tipo não previa o verbo "usar", que, portanto, era considerado ato atípico por um seguimento da jurisprudência, com respaldo em precedente do STF. [09]
Segundo a doutrina clássica, [10] seguida amiúde pela jurisprudência, o bem jurídico tutelado pelas regras de combate às drogas, inclusive no porte para consumo, [11] é a saúde pública, sob o argumento de que a deterioração por ela causada não se limita ao usuário, pois elas põe em risco a própria integridade social. Nada obstante, trata-se, em verdade, de delito pluriofensivo, conforme bem orienta a ONU. [12]
Ainda de acordo com a doutrina tradicional, [13] as normas antidrogas configuram delitos de perigo abstrato. Portanto, para a sua consumação não há necessidade da ocorrência concreta do dano, pois a lei, jure et jure (em caráter absoluto), presume o perigo, bastando para a sua configuração que a conduta seja subsumida num dos verbos nucleares. Todavia, essa concepção abstrata, por tirar do julgador quaisquer possibilidades avaliativas do perigo à saúde pública, no caso concreto, já foi objeto de crítica de doutrina. [14]
Convém destacar, nesse comenos, que a Lei 6.368/76 foi alterada ou parcialmente revogada pelas Leis nº 8.072/90, 7.560/96, 9.804/99, 10.409/2002 e 10.741/03, porém, em relação à incriminação do uso, essas sucessivas alterações nada afetaram, uma vez que a Lei 10.409/02, que pretendia regular a matéria em sua totalidade, foi completamente desnaturada quando teve vários dispositivos vetados. [15] Dessa forma, até a vigência da atual Lei 11.343/06, conviveu-se, como disse Damásio de Jesus, com uma "colcha de retalhos" feita com duas leis antitóxicos, uma tratando do direito material, ou seja, dos crimes e das penas ( Lei 6.368/76), e outra do aspecto procedimental (Lei 10.409/02). [16]
Nada obstante a clara incriminação feita ao consumo pela Lei 6.368/76, no início da década de 90 significativa parcela da doutrina e da jurisprudência pátria - quiçá inspirada por movimentos internacionais [17] ou pelos ventos democráticos da Constituição de 1988 -, passou a sustentar a atipicidade penal da posse de drogas para uso pessoal.
Basicamente, três eram [18] as correntes existentes: a) inconstitucionalidade da incriminação do uso, por interferência na esfera privada do indivíduo; b) ausência de perigo ou ofensa à saúde pública e; c) insignificância penal da conduta em determinadas situações.
A grosso modo, a primeira vertente defendia a necessidade de respeito ao direito do cidadão de usar estupefacientes, porquanto este agir, supostamente, não interferiria na vida de outras pessoas, não sendo lícito, dentro do sistema de liberdades democráticas proposto pela então novel ordem constitucional, punir o viciado que, antes de tudo, é uma pessoa que precisa ser tratada e que teria a sua vida ainda mais arruinada se o Estado o tratasse como criminoso. Sustentava-se, portanto, que a conduta de portar entorpecente para uso pessoal é fato que diz respeito à faculdade de se decidir ou agir segundo sua própria determinação, o que deve ser garantido ao homem livre, que assume as eventuais conseqüências em seu ambiente privado, não interferindo na vida de seu semelhante. "Se [o Estado] não quer reconhecer e tratar o viciado como doente, pelo menos há que respeitar sua liberdade individual como se plenamente responsável fosse." [19]
Por outro lado, partindo da posição daquele entendimento tradicional de que o bem jurídico tutelado nas infrações relativas às drogas é a saúde pública, outra corrente argumentava que na conduta de posse para uso de drogas não há expansibilidade do perigo, logo, não há como nela se identificar tipicidade material, na medida em que não importará em ofensa à saúde pública, sustentando-se que a expansibilidade do perigo e a destinação individual são condutas antagônicas, afinal "destinação pessoal não se compatibiliza com o perigo para interesses jurídicos alheios." [20]
Ainda nessa linha de raciocínio, refutava-se o argumento de que os usuários de drogas ofendem a saúde publica em virtude da difusão de seu consumo, prejudicando a sociedade como um todo, afirmando-se que, em verdade, a ação em questão não se enquadra juridicamente entre as hipóteses de crime contra a saúde pública, pois não possui as características daqueles tipos penais, que exigem perigo para a saúde de indeterminado número de pessoas para obter preocupação legal, e o portar entorpecente para uso próprio não atinge a incolumidade pública, precisamente por não afetar a saúde de indeterminado número de pessoas. Mesmo que se aceitasse a idéia que todos os usuários difundem as drogas entre amigos e conhecidos, não se estaria diante de um delito contra a saúde pública, pois, mesmo nesses casos, as vítimas, em potencial, são determinadas, não se criando um perigo coletivo. [21]
Maria Lúcia Kaplan, [22] bem sintetizou essa linha de entendimento abolicionista:
No Estado Democrático de Direito, cuja tônica maior encontra-se na subordinação do exercício do poder à lei, com vista a garantir os direitos e a dignidade de cada indivíduo, o bem jurídico há de sempre ser visto sob uma perspectiva pessoal. A identificação de bens jurídicos de caráter coletivo ou institucional só se admite enquanto condição de proteção de bens jurídicos individuais. A previsão dos denominados bens jurídicos de controle, que, apelando para expressões vagas, como ordem pública ou paz pública, orientam a atenção do direito penal no sentido da criminalização de condutas que atingem tão somente a mera afirmação da vontade ou da autoridade do Estado é incompatível com o Estado Democrático de Direito.
Na hipótese das drogas tornadas ilícitas, único bem jurídico reconhecível nas regras criminalizadoras é a saúde pública, como já explicitava o primitivo dispositivo do artigo 281 do Código Penal brasileiro, posteriormente substituído pela legislação especial. A saúde pública – espécie do gênero incolumidade pública – tem, como é sabido, um caráter coletivo, que é dado pela indeterminação de seus titulares. Sua afetação, como ocorre em relação a outros bens jurídicos desta natureza, só se verifica na medida da expansibilidade da lesão ou do perigo concreto de lesão a um número indeterminado de sujeitos.
Assim, enquanto houver destinação pessoal para a posse da droga e enquanto seu consumo se fizer de modo que não ultrapasse o âmbito individual, não haverá afetação da saúde pública. Ter algo para si próprio é o oposto de ter algo expansível a terceiros. Aqui se têm condutas privadas, em que ausente a concreta afetação de um bem jurídico de terceiros, condutas que como tal, não podem ser objeto de qualquer forma de criminalização.
Faz parte da liberdade, da intimidade e da vida privada a opção por fazer coisas, que pareçam para os outros – ou que até, efetivamente, sejam – erradas, "feias", imorais ou danosas a si mesmo. A dignidade da pessoa humana, reconhecida desde as origens do Estado Democrático de Direito, impede a transformação forçada do indivíduo. Enquanto não afete direitos de terceiros, o indivíduo pode ser e fazer o que bem lhe aprouver. O que os outros – e, portanto, também o Estado – podem fazer, nestas circunstâncias, é apenas tentar mostrar ao indivíduo, que, supostamente, está se prejudicando, que seu comportamento não está sendo bom, jamais podendo, no entanto, obrigá-lo a mudar este comportamento, ainda mais através da imposição de uma pena, qualquer que seja sua natureza ou sua dimensão.
Por fim, conquanto não apresentasse ostensivamente uma postura abolicionista, a terceira corrente sustentava que a posse de pequena quantidade de drogas, para uso pessoal, era um insignificante penal. Esse escólio, também partindo do pressuposto de que o porte para uso é crime de perigo contra a saúde pública, considerava-o não tipificado quando a quantidade, por tão ínfima, não fosse capaz de criar aquele perigo. Afirmava-se que nenhum tipo penal é instituído pela lei para existir por si mesmo, sem um sentido finalístico definido, e que a criação de tipos penais é determinada pelo princípio da imprescindibilidade deles como meio de proteger certos bens jurídicos essenciais. Por isso não se poderia considerar como típica a conduta de portar substância entorpecente sem a indispensável presença do perigo comum, que vem a ser, precisamente, o elemento necessário para que haja a consumação delituosa. [23]
Sem embargo desses ponderáveis argumentos, a jurisprudência dos Tribunais Superiores [24] firmou-se no sentido de não externar condescendência com os usuários de drogas, reafirmando a constitucionalidade da norma incriminadora do uso e afastando o argumento de que não atingiria a saúde pública, pois como argumentou o Min. Octávio Galotti "a capacidade de causar a dependência diz respeito às propriedades e não à quantidade encontrada, em cada caso, porque o crime ora cogitado é um crime de perigo" (...) "que está vinculado à potencialidade da droga, ao risco social e de saúde pública, até mesmo pelo exemplo que do fato pode advir, e não à lesividade comprovada em cada episódio concreto." [25]
O STF, por longo tempo, também adotou entendimento contrário ao reconhecimento do princípio da insignificância com relação a posse de drogas para uso pessoal, existindo uma série de precedentes daquela Corte no sentido de que a pequena quantidade de tóxico encontrada em poder do usuário não descaracterizaria o crime previsto no revogado artigo 16 da Lei 6.368/76 (nesse sentido, os RHCs 51.235 e 45.973, HCs 68.516, 69.806, 71.638 e 74.661, e o RC 108.697).
Somente no ano passado, a Segunda Turma do STF, ao julgar o HC 92961, decidiu por aplicar o princípio da insignificância para absolver militar da condenação a um ano de prisão com sursis pelo prazo de prova de dois anos, que lhe foi imposta pelo STM pelo crime de consumo e tráfico de entorpecentes (artigo 290 do Código Penal Militar). Eis a ementa:
HABEAS CORPUS. PENAL MILITAR. USO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA MILITAR. ART. 1º, III DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
1. Paciente, militar, preso em flagrante dentro da unidade militar, quando fumava um cigarro de maconha e tinha consigo outros três.
2. Condenação por posse e uso de entorpecentes. Não-aplicação do princípio da insignificância, em prol da saúde, disciplina e hierarquia militares.
3. A mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica constituem os requisitos de ordem objetiva autorizadores da aplicação do princípio da insignificância.
4. A Lei n. 11.343/2006 --- nova Lei de Drogas --- veda a prisão do usuário. Prevê, contra ele, apenas a lavratura de termo circunstanciado. Preocupação, do Estado, em mudar a visão que se tem em relação aos usuários de drogas.
5. Punição severa e exemplar deve ser reservada aos traficantes, não alcançando os usuários. A estes devem ser oferecidas políticas sociais eficientes para recuperá-los do vício.
6. O Superior Tribunal Militar não cogitou da aplicação da Lei n. 11.343/2006. Não obstante, cabe a esta Corte fazê-lo, incumbindo-lhe confrontar o princípio da especialidade da lei penal militar, óbice à aplicação da nova Lei de Drogas, com o princípio da dignidade humana, arrolado na Constituição do Brasil de modo destacado, incisivo, vigoroso, como princípio fundamental (art. 1º, III).
7. Paciente jovem, sem antecedentes criminais, com futuro comprometido por condenação penal militar quando há lei que, em vez de apenar --- Lei n. 11.343/2006 --- possibilita a recuperação do civil que praticou a mesma conduta.
8. Exclusão das fileiras do Exército: punição suficiente para que restem preservadas a disciplina e hierarquia militares, indispensáveis ao regular funcionamento de qualquer instituição militar.
9. A aplicação do princípio da insignificância no caso se impõe, a uma, porque presentes seus requisitos, de natureza objetiva; a duas, em virtude da dignidade da pessoa humana. Ordem concedida.

A Lei 11.343/06 e a utilização simbólica do Direito Penal:

Com o advento da Lei 11.343/2006, verificou-se um inegável titubeio do legislador, o qual, talvez temendo a repercussão negativa, ou os efeitos nefastos que uma mensagem legislativa no sentido de descriminalizar o uso de drogas provocaria perante à sociedade, não ousou a tal ponto, mas acabou, na prática, por inviabilizar a aplicação de qualquer sanção penal.
Com efeito, o artigo 28 da referida lei dispõe:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: [26]
I - advertência sobre os efeitos das drogas; [27]
II - prestação de serviços à comunidade; [28]
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. [29]
§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§ 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas [30] a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I - admoestação verbal;
II - multa.
§ 7º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.
Luiz Flávio Gomes [31] um dos primeiros a escrever sobre a alteração legislativa, chegou a afirmar que "o legislador aboliu o caráter ‘criminoso’ da posse de drogas para consumo pessoal". O eminente jurista fundamentou seu entendimento na Lei de Introdução ao CP brasileiro, que em seu art. 1º dispõe: "Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente". Concluindo:
"Ora, se legalmente (no Brasil) ‘crime’ é a infração penal punida com reclusão ou detenção (quer isolada ou cumulativa ou alternativamente com multa), não há dúvida que a posse de droga para consumo pessoal (com a nova Lei) deixou de ser ‘crime’ porque as sanções impostas para essa conduta (advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programas educativos – art. 28) não conduzem a nenhum tipo de prisão. Aliás, justamente por isso, tampouco essa conduta passou a ser contravenção penal (que se caracteriza pela imposição de prisão simples ou multa). Em outras palavras: a nova Lei de Drogas, no art. 28, descriminalizou a conduta da posse de droga para consumo pessoal. Retirou-lhe a etiqueta de ‘infração penal’ porque de modo algum permite a pena de prisão. E sem pena de prisão não se pode admitir a existência de infração ‘penal’ no nosso País."
Portanto, para o referido autor, a posse de drogas assumia a feição de uma uma "infração sui generis" ou uma "infração para – penal", descartando, entretanto, que o artigo 28 da 11.343/06 configurasse um "ilícito administrativo", uma vez que "as sanções cominadas devem ser aplicadas não por uma autoridade administrativa e sim por um juiz (juiz dos Juizados Criminais)".
Em sentido diverso, Gilberto Thums e Vilmar Pacheco, por sua vez, chegaram a sustentar que "as hipóteses do art. 28 são ‘abolitio criminis’, e todos os agente condenados pelo art. 16 da antiga lei de Tóxicos (nº 6.368/76) têm direito a revisão criminal para cancelar todos os efeitos decorrentes da condenação". [32]
Sem embargo, a maioria da doutrina posicionou-se pelo reconhecimento de que o artigo 28 da Lei de Drogas prevê mesmo um "crime".
Nesse sentido, Renato Marcão [33] lucidamente obtempera que é preciso ter em conta que o CP brasileiro é de 1940 e, portanto, não pode limitar os contornos das infrações penais no atual estágio da legislação brasileira, inclusive em face dos preceitos inovadores das políticas criminal e penitenciária contemporâneas e dos princípios e regras constitucionais existentes sobre o tema artigo (vide, v.g., o art. 5º, XLVI, da CF, que abrindo a possibilidade de o legislador ordinário prever outras penas, determinou a adoção da "prestação social alternativa" e da "suspensão ou interdição de direitos").
Realmente, o CP foi feito sob o manto de um tempo autoritário, em que nem mesmo as denominadas "penas alternativas" encontravam-se na Parte Geral do CP da forma como foram postas com a reforma penal de 1984 (Lei n. 7.209, de 13-7-1984), e menos ainda com a relevância que passaram a ser tratadas com o advento da Lei n. 9.714/98. Portanto, a definição do art. 1º da Lei de Introdução ao CP, limitada e sem critérios técnicos, [34] efetivamente não se presta a uma completa classificação do que seja, ou não, crime e contravenção, revelando-se incompatível com o Direito Penal do século XXI.
Há que se destacar, ainda, a "colocação topográfica" do art. 28 dentro da Lei 11.343/2006, pois se encontra no Título III (Das Atividades de Prevenção do Uso Indevido, Atenção e Reinserção Social de Usuários e Dependentes de Drogas), Capítulo III, que cuida "Dos Crimes e das Penas".
Sucedeu-se, ademais, que, no devir histórico, a Primeira Turma do STF veio a tratar da questão, posicionando-se da seguinte forma:
A Turma, resolvendo questão de ordem no sentido de que o art. 28 da Lei 11.343/2006 (Nova Lei de Tóxicos) não implicou abolitio criminis do delito de posse de drogas para consumo pessoal, então previsto no art. 16 da Lei 6.368/76, julgou prejudicado recurso extraordinário em que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro alegava a incompetência dos juizados especiais para processar e julgar conduta capitulada no art. 16 da Lei 6.368/76. Considerou-se que a conduta antes descrita neste artigo continua sendo crime sob a égide da lei nova, tendo ocorrido, isto sim, uma despenalização, cuja característica marcante seria a exclusão de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penal. Afastou-se, também, o entendimento de parte da doutrina de que o fato, agora, constituir-se-ia infração penal sui generis, pois esta posição acarretaria sérias conseqüências, tais como a impossibilidade de a conduta ser enquadrada como ato infracional, já que não seria crime nem contravenção penal, e a dificuldade na definição de seu regime jurídico. Ademais, rejeitou-se o argumento de que o art. 1º do DL 3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais) seria óbice a que a novel lei criasse crime sem a imposição de pena de reclusão ou de detenção, uma vez que esse dispositivo apenas estabelece critério para a distinção entre crime e contravenção, o que não impediria que lei ordinária superveniente adotasse outros requisitos gerais de diferenciação ou escolhesse para determinado delito pena diversa da privação ou restrição da liberdade. Aduziu-se, ainda, que, embora os termos da Nova Lei de Tóxicos não sejam inequívocos, não se poderia partir da premissa de mero equívoco na colocação das infrações relativas ao usuário em capítulo chamado ‘Dos Crimes e das Penas’. Por outro lado, salientou-se a previsão, como regra geral, do rito processual estabelecido pela Lei 9.099/95. Por fim, tendo em conta que o art. 30 da Lei 11.343/2006 fixou em 2 anos o prazo de prescrição da pretensão punitiva e que já transcorrera tempo superior a esse período, sem qualquer causa interruptiva da prescrição, reconheceu-se a extinção da punibilidade do fato e, em conseqüência, concluiu-se pela perda de objeto do recurso extraordinário" [35]
Portanto, segundo a doutrina majoritária e o STF, ter-se-ia operado, com o advento do artigo 28 da Lei 11.343/06, uma "despenalização", mas não uma "descriminalização" ou abolitio criminis do porte de drogas para consumo pessoal, que continua a ser crime. [36]
Sem embargo dessa conclusão - e esse é o ponto nodal do presente ensaio - tem-se que a "despenalização" feita pelo legislador brasileiro (de caso pensado, ou não) foi muito além da "exclusão de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penal", pois, em verdade, o modelo adotado pela Lei 11.343/06 inviabiliza, na prática, a aplicação efetiva de qualquer sanção penal, com exceção da esdrúxula "pena de advertência", configurando, na realidade predominante no cotidiano forense, uma total despenalização (ou impunidade), pois o juiz nada pode fazer em termos coativos contra o usuário.
Portanto, novamente concordando parcialmente com Luiz Flávio Gomes, [37] não há como negar que a atual lei antidrogas promoveu, na espécie delitiva em comento, uma "banalização do Direito penal", pois passou-se a ter um "crime" com conseqüências pífias (insignificantes) caso o infrator não cumpra as sanções impostas pelo juiz, revelando-se nítido o manejo de um Direito Penal simbólico latente. [38]
De fato, note-se que o usuário de drogas, como não poderia deixar de ser, será processado e julgado pelo Juizados Especiais Criminais (art. 48, § 1º, da Lei 11.343/06), portanto, a princípio, fará jus à transação penal (art. 76 da Lei 9.099/95), que deverá, necessariamente, versar sobre as penas alternativas previstas no supramencionado art. 28 (art. 48, § 5º, da Lei 11.343/06).
Ora, se o agente for primário e de bons antecedentes, não revelando maior culpabilidade (segundo os vetores do art. 59 do CP), a "pena" a ser fixada nessa transação penal não pode ser outra a não a ser a de advertência, [39] mesmo porque seria arrematado absurdo admitir-se uma sentença condenatória aplicando a "pena de advertência", por isso, em nosso entender, dos males o menor, devendo-se adotar a extravagante "pena" na primeira oportunidade azada, vale dizer, em sede de transação penal.
Essa pena alternativa transacionada, qualquer seja, não valerá para antecedentes nem para reincidência, nos termos art. 76, § 4º, da Lei 9.099/95. Entretanto, na lei especial em comento, ao contrário do que esse artigo da Lei 9.099/95 determina, se o indivíduo, depois de feita uma transação, for outra vez encontrado em posse de droga para consumo pessoal, não estará automaticamente impedida uma nova transação, [40] mesmo que dentro do lapso de cinco anos, é o que se infere do disposto no §4º do art. 28 da Lei 11.343/06. O que mudará, nessa situação é que a advertência não será mais cabível, pois advertido ele já foi e a sua contumácia revelou que essa é uma "pena" insuficiente.
Portanto, após a "pena de advertência", tanto a prestação de serviços à comunidade como a medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo poderão, sim, ser transacionadas no patamar temporal de cinco meses.
Vale dizer, somente existirá o impedimento automático para a realização de uma nova transação, dentro do lapso de cinco anos, nos termos da Lei 9.099/95, se o usuário praticar outra infração penal de menor potencial ofensivo, diversa daquela prevista no art. 28 da Lei 11.343/06.
Em havendo descumprimento da transação penal, não é possível o prosseguimento da ação penal, conforme orienta o STF em relação aos demais crimes, [41] pois, ao contrário da omissão que existe na Lei 9.099/95, a Lei 11.343/06 informa que o juiz dispõe de somente duas "medidas coercitivas" (art. 28, § 6º): admoestação verbal (que nada mais é que a advertência, a qual, como visto, provavelmente não tenha adiantado anteriormente) e multa (essa é sanção máxima possível), fixada na quantidade entre 40 (quarenta) e 100 (cem) dias-multa, atribuindo a cada dia, segundo a capacidade econômica do agente, o valor de um trinta avos até 3 (três) vezes o valor do maior salário mínimo nacional (art. 29).
Aqui talvez resida a maior falácia da lei, pois sabidamente a maioria dos clientes da justiça penal são inexeqüíveis pecuniariamente, na medida em que inseridos dentro daquele processo de "criminalização secundária" de que nos fala a doutrina penal. [42]
Além disso, é sabido que as multas aplicadas em processos penais devem ser executadas pela Fazenda Pública [43] (e não pelo Ministério Público), que nas mais das vezes não o faz, em virtude de contingências operacionais regulamentadas em lei, [44] portanto, na maioria dos casos não restará outra alternativa a não ser aguardar a prescrição (que ocorrerá em dois anos, nos termos do art. 30 da nova lei)!
Por outro lado, se, por qualquer motivo, não for cabível a transação penal, havendo a propositura da ação penal, cabe ao Ministério Público analisar a possibilidade da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/1995), que, na prática, somente tenderá a ser aceita para evitar os efeitos indesejados de um antecedente e a perspectiva de reconhecimento da reincidência advindos de eventual sentença condenatória, pois esta, por também ser inexeqüível, não intimidará ninguém.
Com efeito, não sendo aceita ou não sendo viável a suspensão condicional do processo, segue-se o procedimento sumaríssimo dos Juizados Especiais Criminais, sendo que as penas do art. 28 da Lei 11.343/06, nessa hipótese, serão impostas, ao final, em sentença condenatória, gerando efeitos penais (antecedentes, reincidência, afastamento de benefícios, etc.).
Entretanto, se houver descumprimento da sentença condenatória, voltará a ter incidência o § 6º do art. 28 da Lei 11.343/2006, ou seja, caberá ao Juiz dos Juizados ou da Vara de Execuções Criminais (dependendo da pena aplicada) fazer a devida admoestação (pela enésima vez) e, se necessário, aplicar a pena de multa, a qual, como dito anteriormente, na maior parte dos casos é inexeqüível.
Daí concluir-se que eventual processo por posse de drogas, na mais das vezes, [45] somente servirá para fixar a reincidência (genérica) e, por conseguinte, evitar outros benefícios penais.
Na hipótese do usuário flagrado já ser considerado tecnicamente reincidente, o processo, na maior parte dos casos, não terá qualquer perspectiva de efetividade, pois qualquer pena que vier a ser aplicada não será exeqüível e o processo será completamente inútil!
Dentro desse contexto, em encontro do Ministério Público do Rio Grande do Sul, para debater a Lei 11.343/06, [46] preconizou-se que nesses casos em que se antolhe patente a inefetividade da ação penal, o Ministério Público deve promover pelo arquivamento do Termo Circunstanciado, por falta de interesse de agir ( nos termos do art. 43, II, do Código de Processo Penal), pois se estará diante de arrematada inutilidade do processo em virtude da mais absoluta falta de efetividade da futura sentença a ser proferida, a evidenciar, de plano, que a persecução penal, nestes casos, nenhum efeito concreto terá, uma vez que natimorta, fadada, portanto, ao escárnio, sendo que eventual ação penal somente viria a contribuir, ainda mais, para o desgaste do prestígio do Poder Judiciário brasileiro, com desperdícios de tempo e recursos de ordem material e intelectual. [47]
Se o legislador queria afastar a possibilidade da aplicação irrefletida da pena privativa de liberdade ao usuário não precisaria fazer o que fez, pois o art. 76 da Lei. 9.099/95 já prevê que somente podem ser objetos de transação penal as penas restritivas de direito ou multa. Ademais, está consolidado no âmbito dos tribunais pátrios que, diante do não cumprimento do referido benefício, não há como se converter a pena restritiva de direitos transacionada em privativa de liberdade, como inicialmente chegou a cogitar a doutrina [48] e o STJ [49], devendo-se retornar ao status quo ante, a fim de possibilitar ao Ministério Público a ação penal, na qual poderão ser aplicadas novamente as sanções alternativas, desta feita, contudo, com força coercitiva, em virtude da possibilidade de conversão em pena privativa de liberdade, a fim de garantir o êxito das penas alternativas, pois não existe "justiça terapêutica" [50] sem coercitividade. Essa possibilidade, todavia, restou afasta pela Lei de Drogas.
Em resumo, a posição da legislação brasileira, além de não ser terapêutica, não é pedagógica, pois embora considere crime o porte para consumo próprio, criou penas cuja força repressiva é tão inexpressiva que ninguém se sentirá dissuadido a não usar drogas.
Pelo contrário, dado o estímulo do "fruto proibido", o porte de drogas, a partir da nova lei, revelar-se-á em "interessante" instrumento de contestação do "poder Estatal", pois, mesmo na remotíssima hipótese do usuário ser flagrado (em virtude da consabida deficiência policial no combate ao crime), ele sabe que, se vier a ser condenado, a sanção penal não lhe provocará nenhuma "dor", não tendo porque temê-la, o que rende ensejo ao escárnio de todo um sistema de repressão estatal, afinal o usuário sabe, desde o início, que não "vai dar nada". Vale dizer, entre a descriminalização e a despenalização, optou-se pela "desmoralização" do sistema penal. [51]

Entre os defensores da liberalização e as críticas proibicionistas: um caminho alternativo.

No trato da questão do porte de drogas para consumo pessoal existem três grandes posições que podem ser adotadas. Entre elas, pode-se dizer que existem duas antípodas, a primeira, dita proibicionista, que propõe a efetiva criminalização do tráfico e do consumo de drogas, numa verdadeira "guerra às drogas"; e a segunda, denominada abolicionista, propõe a legalização total das drogas, tanto para venda quanto para consumo.
Os defensores do abolicionismo e da liberalização das drogas possuem inúmeros argumentos. Dentro de um enfoque mais criminológico, reconhecendo-se o direito à diferença de pensamento, a seguir destacar-se-á os argumentos considerados mais relevantes dentre aqueles encontrados nas fontes consultadas. [52]
Os abolicionistas - salientando que o uso de drogas é uma "constante antropológica", ou seja, prática antiga na história da humanidade, que não deve ser nem exorcizada nem mistificada - partem do princípio de que todo o indivíduo tem o direito de se autodeterminar, podendo fazer uso daquilo que entender melhor lhe convém, no âmbito da sua privacidade, que lhe é garantida constitucionalmente.
Nesse diapasão, afirmam que a droga provoca danos apenas à saúde do usuário, não havendo qualquer lesão a outras pessoas ou à sociedade, de modo que o Estado não deve ser chamado a intervir, pois assim como a lei penal não pune o suicídio e a autolesão, não pode igualmente punir o porte de droga para uso pessoal. Já o dependente de drogas deve ser tratado pelo Estado como um doente que merece cuidados médicos e psicológicos, como hoje ocorre com os viciados em álcool e tabaco.
A latere, sustentam que o mercado negro do tráfico propicia a formação de um vultoso negócio clandestino, alimentado à custa de vidas humanas que são impelidas a um submundo de criminalidade. Por conseguinte, a simples legalização acabaria com todo o cortejo de malefícios que está no entorno desta clandestinidade, como, v.g., a violência dos traficantes e a adulteração criminosa das drogas, que provocam vasta perda de vidas humanas "inocentes".
A ilegalidade, ademais, estimularia a denominada "atração pelo fruto proibido", enquanto que a liberalização, embora a princípio possa ensejar uma procura maior, notadamente pelos experimentadores, no longo prazo tenderia a arrefecer o consumo, que perderia sua simbologia (a droga é vista como símbolo de "liberdade" e contestação à autoridade, quer familiar, quer estatal).
Entretanto, nem todos os abolicionistas almejam da mesma maneira a liberalização, pois muitos a circunscrevem às drogas leves, que consideram inofensivas, sublinhando a incongruência entre a admissibilidade legal do consumo do tabaco e do álcool e a proibição da maconha. Nesse sentido, destacam que a proibição total do uso, sem diferenciação entre drogas "leves" e "duras", acaba por favorecer o abuso das mais prejudiciais. Além disso, os defensores da liberalização das drogas leves defendem que, com legalização destas, se sobrariam recursos humanos e financeiros para o combate às "drogas pesadas" de uma forma mais eficaz.
Esses argumentos dos abolicionistas são submetidos à forte crítica proibicionista. [53]
Afirma-se, em relação ao suposto "direito natural" de se autodeterminar e à garantia constitucional da privacidade, que tais categorias jurídicas não possuem a amplitude de proteção invocada, pois a própria Constituição não prevê direitos fundamentais [direitos humanos positivados] absolutos, [54] pois todos estão sujeitos às restrições impostas pela convivência com outros direitos de igual dignidade e pelo interesse público, que há de preponderar sobre o interesse particular, sustentando, ademais, que os direitos e garantias individuais existem para assegurar ao homem espaço para o integral desenvolvimento de sua personalidade, sem interferências do Estado, e não para acobertar comportamentos nocivos à coletividade e aos outros cidadãos, pois o portador da droga raramente é indiciado pelo uso domiciliar. Ao reverso, as apreensões policiais ocorrem geralmente em locais públicos, como ruas, parques, bares e etc. Ou seja, aquele comportamento inicialmente inofensivo, adstrito ao espaço doméstico, geralmente expande-se, adquirindo significação social, pelo risco que a difusão do uso das drogas em lugares públicos provoca.
Com relação aos dependentes, sustentam que os doentes mentais que praticam fatos típicos e ilícitos ficam sujeitos às medidas de segurança estabelecidas na legislação penal, não havendo razão para excluir os toxicômanos.
Por outro lado, afirmam que a comparação com a autolesão é imprecisa, porquanto o que a lei incrimina não é o uso (que seria uma forma de autolesão) e sim a conduta de adquirir, guardar ou trazer consigo os entorpecentes para consumo pessoal, em virtude do perigo a que expõe a saúde pública, como visto em linhas anteriores. Ademais, conquanto o Direito Penal brasileiro não tipifique a autolesão ou o suicídio, considera ilícitas tais condutas quando pune o partícipe do suicídio alheio (art. 122 do CP) e a autolesão como fraude contra seguradora (art. 171, § 2.°, V, do CP) ou contra o serviço militar (art. 184 do CPM).
À luz da criminologia, os defensores da manutenção da proibição legal, quer do tráfico, quer do consumo, tanto de drogas leves como de drogas pesadas, respondem que a abolição não diminui nem o tráfico nem o consumo, conforme demonstraram experiências postas em prática em alguns países europeus, que, por isso mesmo, regrediram em relação ao laxismo que haviam admitido. [55]
Nesses países, as experiências de liberalização teriam feito aumentar o tráfico, não conseguindo diminuir o consumo, pois restaram facilitadas a iniciação e a propagação da prática. E, mesmo quando se pretendeu a legalização apenas das drogas "leves", acabou-se também por favorecer o desenvolvimento da venda das drogas "duras", dando razão aos defensores da "teoria da escalada", para quem o uso das drogas "leves" leva necessariamente ao uso também das "pesadas".
Para além disso, sustentam que os abolicionistas do tráfico e do consumo não resolveram nenhum dos graves problemas que andam associados às drogas, pois seus argumentos não impedem que a adulteração das drogas continue, tampouco apontam quem as venderia (os atuais "vendedores" ou seriam vendidas em "drogarias"), não sendo cabível a comparação com o tabaco e o álcool, cujos efeitos na saúde individual e pública não se assemelham aos das outras drogas ilícitas, que são muito toxicomanogénicas.
A despeito da possível procedência dessas críticas, o fracasso da estratégia proibicionista adotada em nosso país é conclusão que, parafraseando o saudoso Nelson Rodrigues, somente pode ser negada pela má-fé cínica ou pela obtusidade córnea, de modo que, dentre todas reflexões e dúvidas que os posicionamentos antípodas podem despertar em uma abordagem científica isenta de preconceitos (na medida em que a nossa faticidade possibilita), certamente a uma certeza há que se chegar: em nosso país urge uma nova orientação político-criminal no trato das drogas.
Chegar-se a um consenso sobre essa nova orientação, todavia, é matéria impossível, pois, como diz Hassemer, "em nenhum outro tema de interesse público nossa cultura do debate nos escapa tão completamente e com tanta habilidade como as drogas, nenhum outro campo está tão minado por preconceito e desconfianças pessoas contra que pensa diferente". [56]
Em que pese essa dificuldade, na Europa surgem iniciativas que, não se coadunando com proibicionismo, tampouco com o abolicionismo, são dignas de encômios. É a denominada política de "redução dos danos", como medidas de prevenção, dissuasão, tratamento de saúde e reinserção social.
Exemplo desse modelo é a Lei 30/2000, de Portugal, pela qual o porte para consumo pessoal de drogas deixou de ser punido como crime e passou a ser tratado como "contra-ordenação" (art. 2º), uma espécie de infração administrativa avaliada e punida pela "Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência - CDT" (art. 5º), composta por um membro do governo local, que é o responsável pela coordenação da política da droga e da toxicodependência, um membro jurista designado pelo Ministro da Justiça e outro membro designado pelo Ministro da Saúde, dentre médicos, psicólogos, sociólogos, técnicos de serviço social ou outros com currículo adequado na área da toxicodependência.
O principal critério a ter em conta na hora de distinguir uma "contra-ordenação" de um crime é a quantidade de substância ilícita encontrada na posse do indivíduo.
As quantidades de referência estão estimadas em o equivalente para 10 dias de consumo, para todas as substâncias. A Lei 30/2000 remete para a Portaria nº 94/96, que em seu art. 9º estipula as doses médias diárias individuais para várias substâncias ilícitas. Assim, as quantidades de referência são 10 vezes as doses diárias, nomeadamente para as drogas mais comuns:
Quantidades de referência
Cocaína2g- Cloridrato
0,3g- Base
Speed1g
MDMA1g
LSD500µg
Cannabis5g-Haxixe (resina)
25g- Erva
2,5g- Óleo de haxixe
Opiáceos1g-Heroína e Metadona
2g- Morfina
10g- Ópio

Abaixo destas quantidades é normalmente considerado "contra-ordenação"; acima destas quantidades aumenta a possibilidade de ser considerado crime. [57]

À guisa de encerramento, cumpre consignar que por meio da explanação feita, reputa-se que foi atingido o objetivo deste trabalho: responder as interrogantes lançadas em seu pórtico, pois demonstrou que, a despeito dos respeitáveis entendimentos em sentido contrário, no Brasil, conquanto o porte de drogas ainda seja considerado pela Lei 11.343/06 um "crime" (rectius infração penal de menor potencial ofensivo), referida lei, na prática, afastou a possibilidade de "castigo".
De fato, a atual lei antidrogas, conquanto possa ter sido recebida com alvíssaras pelos defensores da liberalização, insiste em associar a dogradição ao crime, enquanto, objetivamente, consiste em nada louvável manejo simbólico do Direito Penal, pois ao tornar inexeqüível a punição e não prever meios concretos de educação e tratamento, acaba por estimular, ainda mais, a prática que (supostamente) pretendeu combater, com graves prejuízos para a sociedade brasileira, que permanece alheia a essa política criminal "ilusionista".
Vale dizer, mirando o público externo (leia-se eleitores e, quiçá, a comunidade internacional) o discurso oficial é que no Brasil a posse de drogas para uso pessoal é crime punido de forma "humana" pela legislação. Entretanto, para aqueles que labutam dentro do sistema de justiça, seja penal, cível ou menorista, a sensação transmitida é que tanto o Poder Legislativo quanto o Executivo omitem-se, não tratando o assunto com a necessária seriedade.
Por outro lado, em que pese essas conclusões, há que se deixar bem claro que no trato da questão do uso de drogas não há respostas certas ou erradas: existem escolhas. Todavia, de todas as opções possíveis, a do legislador brasileiro foi a pior, pois ele "decidiu não decidir", ficando "em cima do muro", adotando uma posição convenientemente "equívoca", para se usar a expressão do STF.
Assim sendo, somente nos resta esperar que, oxalá, chegue logo o dia em que o Brasil torne-se um país sério, em que os nossos legisladores e governantes tenham suficiente coragem e discernimento para descriminalizar, de fato e de direito, essa conduta, trasladando-a para o mundo do Direito Administrativo, quando não mais será tratada como um problema policial ou criminal, e sim das autoridades administrativas e dos profissionais especializados na área da toxicodependência, como fez a nossa pátria-mãe. E mais, que essa lei não venha solteira, mas acompanhada de uma política pública ampla, efetiva e adequada ao trato do assunto, e que preveja meios concretos e claras definições das atribuições de todos órgão governamentais e da a sociedade, não apenas da Polícia ou da Justiça.

Notas

1.        Em verdade, como destaca Hassemer, o caráter de simbólico Direito Penal é reconhecido mais na "qualidade objetiva da norma" do que na "vontade do legislador", pois na maioria das vezes, em virtude de acordos políticos entre lideranças ou por falta de conhecimentos aprofundados sobre a matéria que está sob sua apreciação, nem mesmo ele tem clareza do seu voto (intenção). Vezes outras, conquanto tenha bem claro o que pretende fazer, ele dissimula e esconde a sua vontade entre o "realmente pretendido" e o "realmente realizado" (HASSEMER, Winfried. Direito Penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 2008, p. 219).
2.        Segundo Vicente Greco Filho, fonte dessa consulta histórica, já no art. 89 das Ordenações Filipinas a legislação pátria revela preocupação com a questão das drogas (GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos – Prevenção – Repressão. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 41).
3.        Na seqüência, preferimos usar a palavra drogas, pois essa expressão foi a opção da nova Lei 11.343/06, entretanto até então a expressão utilizada na legislação e, por conseguinte, na doutrina era "tóxicos".
4.        "Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 20 (vinte ) a 50 (cinqüenta) dias-multa."
5.        "Art. 19. É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se, por qualquer das circunstâncias previstas neste artigo, o agente não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento."
6.        A partir das classificações elaboradas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Organização das Nações Unidas (ONU) (disponível em http://www.imesc.sp.gov.br/infodrogas/Usuar.htm, acesso em 30 de janeiro de 2008) é possível a seguinte classificação das pessoas que utilizam substâncias estupefacientes: o "usuário leve ou ocasional", que é o indivíduo que utiliza drogas eventualmente, se o ambiente for favorável e a droga disponível; o "usuário moderado" que, por sua vez, é o indivíduo que faz uso freqüente de droga, via de regra semanalmente, mas não diariamente e que, portanto, ainda "funciona" socialmente, não apresentando a compulsoriedade física e/ou psíquica do dependente; por fim, o "usuário pesado ou dependente" é o indivíduo que utiliza drogas diariamente, doente que vive pela droga e para a droga, quase que exclusivamente, rompendo os seus vínculos sociais, o que provoca isolamento e marginalização, acompanhados eventualmente de decadência física e moral. Portanto, há que ser ter bem presente a grande diferença entre o usuário e o dependente. Enquanto o dependente é um doente que está subjugado pela droga, apresentando necessidade física ou psíquica de consumi-la, o usuário a consome por opção, não raro em momentos de lazer e descontração, mantendo íntegro o seu livre-arbítrio.
7.        Nesse sentido, por todos: TOLEDO. Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal.5ª ed. São Paulo: Saraiva. 2002, p. 82. Em sentido contrário, adotando o conceito bibartido de crime, segue a escola de René Ariel Dotti, para quem "a culpabilidade é muito mais um pressuposto da pena que um elemento do crime" (DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 339), seguida por vários autores pátrio de prestígio, como Damásio de Jesus, Frederico Marques, Mirabete e etc.
8.        Sustentou-se que o consumidor de drogas qualificadas de ilícitas continuou estigmatizado, ou como criminoso, ou como doente que deve sofrer uma pena ou obrigatoriamente se submeter a tratamento médico, sendo posto, indevidamente, sob a alternativa: "se é enfermo, não é livre; se é livre, é mau." (BARATTA, Alessandro. Fundamentos ideológicos de la actual política criminal sobre drogas, em: La actual política criminal sobre drogas – Una perspectiva comparada. Valencia: Tirant Lo Blanch. 1993, p. 19 e ss.).
9.        "O uso de entorpecente ou psicotrópico não foi incluído na legislação antitóxicos, sendo, pois, atípico o ato daquele que é surpreendido fumando maconha, aspirando cocaína, autoadministrando-se droga ou sendo injetado por outrem" (RT 577/352). Em sentido contrário: "Por derivação lógica, quem é surpreendido fumando "maconha" está a trazer a droga consigo, conduta esta que não pode ser considerada atípica, por integrar, expressamente, o rol do art. 16 da Lei nº 6.368/76. (Apelação Criminal nº 1.0637.02.014708-7/001, 1ª Câmara Criminal do TJMG, São Lourenço, Rel. Edelberto Santiago. j. 13.09.2005, unânime, Publ. 20.09.2005)." O STF, todavia, em uma das suas últimas decisões, seguiu a primeira orientação, como se pode ver na seguinte ementa: "Entorpecentes: posse para uso próprio: inexistência do crime ou, de qualquer sorte, de prova indispensável à condenação: habeas corpus deferido por falta de justa causa. 1. É mais que razoável o entendimento dos que entendem não realizado o tipo do art. 16 da Lei de entorpecentes (L. 6.368/76) na conduta de quem, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, incontinenti, a consome: a incriminação do porte de tóxico para uso próprio só se pode explicar - segundo a doutrina subjacente à lei - como delito contra a saúde pública, que se insere entre os crimes contra a incolumidade pública, que só se configuram em fatos que "acarretam situação de perigo a indeterminado ou não individuado grupo de pessoas" (Hungria). 2. De qualquer sorte, conforme jurisprudência sedimentada, o exame toxicológico positivo da substância de porte vedado é elemento essencial à validade da condenação pelo crime cogitado, o que pressupõe sua apreensão na posse do agente e não de terceiro: impossível, assim, imputar a alguém a posse anterior do único cigarro de maconha que teria fumado em ocasião anterior, se só se pode apreender e submeter à perícia resíduos daquela encontrados com o outro acusado, em contexto diverso." (HC 79189 / SP Relator(a): Min. Sepúlveda Pertence, Julgamento: 12/12/2000 Órgão Julgador: Primeira Turma Publicação DJ 09-03-200)
10.      Vicente Greco Filho destaca que a Lei 6.368/76 estava de acordo com a Convenção Única sobre Entorpecentes da Organização das Nações Unidas de 1961, onde se lia, em seu prefácio, a sensível preocupação com a saúde física e moral da humanidade. Esta Convenção foi ratificada pelo Brasil, sendo transmutada no Decreto 54.216/64. (GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos – Prevenção – Repressão. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 83).
11.      "Mesmo o viciado, quando traz consigo a droga, antes de consumi-la, coloca a saúde pública em perigo, porque é fato decisivo na difusão dos tóxicos. Já vimos ao abordar a psicodinâmica do vício que o toxicômano normalmente acaba traficando, a fim de obter dinheiro para aquisição da droga, além de psicologicamente estar predisposto a levar outros ao vício, para que compartilhem ou de seu paraíso artificial ou de seu inferno." (idem, p. 119)
12.      Nesse sentido, em 1984, a Declaração sobre a luta contra o narcotráfico e o uso indevido de drogas, também expedida pela ONU, alterou significativamente o entendimento daquela Organização a respeito do tema, pois em seu preâmbulo consignou que "comunidade internacional manifesta sua grave preocupação pelo fato de que o narcotráfico e o uso indevido de drogas constituem um obstáculo ao bem-estar físico e moral dos povos e, em particular, da juventude". Como se vê, esse conjunto de bens que se visou tutelar com o combate ao narcotráfico é bem mais amplo do que o conceito de "saúde pública". Daí que Ganzenmüller, Frigola e Escudero afirmam, acuradamente, que "(...) no obstante coincidir la mayoría de los autores y la jurisprudencia em que el bien jurídico protegido es la salud pública, em la actualidade, se itenta buscar um contenido más amplio que justifique la intervencción o exclusión del derecho penal em la incriminacion de las conductas contempladas, pues su existencia justifica la incriminacion de conducta concreta y la intervencion punitiva. Sin duda estamos ante um delito pluriofensivo, em que primando principalmente la proteciocio del bien jurídico a la salud pública, mediatamente se protegem otros bienes jurídicos, tales como la salud individual, la propriedad, la liberdad individual, etc (...)" Aliás, essa já era a antiga lição de Bernardino Gonzaga, que, ao comentar o revogado art. 281 do Código Penal, afirmava "o comportamento delituoso pode afetar inúmeros bens jurídicos: vida, integridade física, saúde, segurança da família, patrimônio, etc. deste conjunto, todavia, a lei destaca um certo bem – saúde pública, que é sempre atingido, e de modo mais próximo, pela liberdade no comercio de drogas, para colocá-lo no posto de objeto de proteção da figura criminosa." (apud SILVEIRA. Renato de Mello Jorge Drogas e Política Criminal. in Drogas, aspectos criminais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense. 2005, p. 33-35)
13.      GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos – Prevenção – Repressão. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 83.
14.      HASSEMER, Winfried. Direito Penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 228-229.
15.      Ao contrário do que foi amplamente divulgado na época, a Lei 10.402/02 não descriminalizou o porte de drogas para consumo pessoal, apenas não previu a pena privativa de liberdade, como se pode ler na Mensagem Presidencial nº 25/02 (disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/Mensagem_Veto/2002/Mv025-02.htm). Ainda, de acordo com a Lei 10.409/2002, tanto o dependente quanto o usuário sujeitar-se-iam à possibilidade de tratamento ambulatorial ou internação, exatamente conforme a Lei 6.368/76, ou seja, não houve alteração substancial quanto às referidas "medidas".
16.      Para o usuário, a grande alteração legislativa foi reflexa, pois, em virtude da pena fixada no art. 16, a partir da Lei 9.099/1995, que criou os Juizados Especiais Criminais, tornou-se viável a suspensão condicional do processo (artigo 89) e, desse modo, abriu-se a primeira perspectiva despenalizadora em relação à posse de droga para consumo pessoal. Posteriormente, com a Lei 10.259/01, que criou os Juizados Especiais Federais, a jurisprudência ampliou o conceito de infração de menor potencial ofensivo para todos os delitos punidos com pena até dois anos, permitindo que o referido delito, que passou para a competência dos juizados criminais, fosse objeto de transação penal (art. 76). A consolidação dessa tendência jurisprudencial adveio com a Lei 11.313/2006, que alterou o artigo 61 da Lei 9.9099/95, admitindo como infração de menor potencial ofensivo todas as contravenções assim como os delitos punidos com pena máxima não excedente de dois anos. Vale dizer, a Lei 9.9099/95 afastou, quase que completamente, a possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade ao usuário.
17.      Noticiados por Alessandro Baratta (BARATTA, Alessandro. Fundamentos ideológicos de la actual política criminal sobre drogas, em: La actual política criminal sobre drogas – Una perspectiva comparada. Valencia: Tirant Lo Blanch. 1993, p. 19 e ss).
18.      Utilizou-se os verbos no passado, porquanto as referências versam sobre o art. 16 da Lei 6.368/74, porém, na realidade esses entendimentos ainda perduram na vigência da Lei 11.343/06. Nesse sentido, por exemplo, é consolidada a jurisprudência da Turma Recursal do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, por todos: A nova lei de tóxicos não veio para abolir o caráter criminal das condutas do seu artigo 28. [porém] Quando ínfima a quantidade da droga apreendida, no caso, menos de 1g, agregada às circunstâncias que envolvem a conduta, resta presumido que o fato não tem repercussão na seara penal. Não ocorreu efetiva lesão à bem jurídico tutelado, enquadrando-se o fato no princípio da insignificância. (Recurso Crime Nº 71001358480, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Alberto Delgado Neto, Julgado em 03/09/2007)
19.      No Rio grande do Sul, o precursor dessa argumentação foi o Des. Milton do Santos Martins, como se pode ver no seu voto por ocasião do Incidente de Inconstitucionalidade AC 686062340. Entretanto, a argumentação não foi acolhida pela maioria, podendo-se extrair do voto do Des. Nério Letti, relator designado para o acórdão, as seguintes passagens: "(...) Ora essa conduta destrói valores de convivência, lança o viciado em nova espécie de conflitos, por isso examina-se a pena sob o ponto de vista individual, mas também numa projeção do social: quanto maior for o número de pessoas englobadas pela prática desse vício, maior o prejuízo social. O vício de drogas aumenta o número daquelas pessoas que ingressam numa faixa de improdutividade, de falta de assimilação das regras de convívio social, criando-se uma verdadeira sociedade diferenciada dentro da sociedade, de pessoas que não produzem e que podem evidentemente contribuir para cada vez mais criarmos uma sociedade amorfa, uma sociedade que não reage, que não tem interesse em progresso social, político, econômico, etc."."(...) Tudo isso me demonstra que o interesse social prevalece em relação ao interesse individual. Por esses motivos, não poderia decretar a inconstitucionalidade do art. 16, porque nele vejo uma forma de proteção do bem jurídico social, que é bem maior, bem mais avultado e muito mais importante no nosso contexto do que a liberdade individual de um eventual viciado."(RJTJRS 128/34)
20.      KARAM, Maria Lúcia. Dos crimes, penas e fantasias. Rio de Janeiro: Luam, 1991, p. 122-127.
21.      Apelação Crime Nº 70000006247, Câmara de Férias Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio Baptista Neto, Julgado em 06/10/1999.
22.      KARAM, Maria Lúcia. Drogas ilícitas e globalização: proibicionismo e ampliação do poder de punir. Democracia Viva. São Paulo, n.17, p.15-19, jul./ago. 2003.
23.      TJRS - AC n.º 68006024 - Rel. Des. Ladislau Fernando Rohnelt – RJTJRS 116/131.
24.      No sentido de que seria mais adequado que ao usuário fosse dada "assistência médica do Estado e não a sua penitenciária" encontrou-se tão-somente o HC 44234/SP - Relator(a): Min. Aliomar Baleeiro, Julgamento: 20/06/1967 Órgão Julgador: Segunda Turma, anterior, portanto, à legislação proibicionista. Todavia, já no RHC 50688/GB - Relator(a): Min. Luis Gallotti Julgamento: 12/12/1972 Órgão Julgador: Primeira Turma Publicação DJ 02-03-1973, a Excelsa Corte pátria curvou-se à incriminadora legislação vigente.
25.      RE 109619 / SP - Relator(a): Min. Octavio Gallotti, Julgamento: 19/08/1986, Órgão Julgador: Primeira Turma, Publicação DJ 19-09-1986.
26.      A primeira observação que salta aos olhos é que a lei previu no seu preceito secundário a aplicação de penas alternativas ao usuário/dependente, de forma autônoma, quando na tradição do Direito Penal Brasileiro as penas restritivas de direitos sempre tiveram natureza substitutiva.
27.      A risível "pena de advertência", como dito e demonstrado ao longo do texto, única efetivamente viável de ser aplicada ao usuário de drogas, vem sendo criticada severamente por toda a doutrina, pois não atinge minimamente as funções da pena, que são retribuição e prevenção (geral e especial), pois não intimida qualquer cidadão a não consumir drogas. Além disso, a tal "pena de advertência" banaliza o Direito Penal (ferindo mortalmente os princípios da fragmentariedade e subsidiariedade) igualando-o a outros ramos do direito, nomeadamente o administrativo, o que causa descrédito perante a sociedade, a par de "revoltar" grande parte dos operadores do Direito, que de antemão vislumbram a inocuidade de seus esforços.
28.      A prestação de serviços à comunidade é a única das alternativas legais que pode ser considerada uma pena, porém, em sendo aplicada de forma autônoma e não em substituição à pena privativa de liberdade, portanto sem possibilidade de conversão, não possui coercibilidade, conforme procurar-se-á no decorrer do texto.
29.      O comparecimento a programa ou curso educativo, como o próprio inciso revela, não é uma pena e sim medida educativa, cujo escopo é encaminhar o usuário de drogas à orientação profissional, portanto trata-se de medida que deveria ser aplicada no âmbito do Poder Executivo e não do Judiciário, muito menos por um Juiz Criminal, cujo poder de coerção é essencial. Porém, se o usuário não comparecer no "programa" ou "curso", ao qual foi destinado via transação penal ou sentença condenatória, o juiz nada poderá fazer, sequer poderá responsabilizá-lo por crime de desobediência, pois a lei prevê conseqüências jurídicas específicas para essa transgressão.
30.      Aqui revela-se desenganadamente evidente que as "penas" previstas no art. 28 não são, em verdade, sanções penais, mas medidas sócio-educativas, por certo inspiradas no ECA (Lei 8.069/90). Essa confusão, não se sabe se foi por descuido ou se foi intencional (mal intencionada), torna claro que o objetivo foi descriminalizar o uso de drogas. Porém sem a coragem de assumir tal posição, o Legislativo e o Executivo resolveram, do alto da varanda de Pilatos, lavar suas mãos e empurrar a decisão sobre o que fazer com o problema para o lado do Ministério Público e do Poder Judiciário, sem lhes dar, todavia, os meios necessários. Talvez, seria melhor se o legislador tivesse criado mais um "Estatuto" o "dos Usuários e Viciados", como parece que agora é moda no Congresso Nacional...
31.      GOMES, Luiz Flávio, et alii (coord.). Nova Lei de Drogas Comentada. São Paulo: RT, 2006, p. 109/110.
32.      THUMS, Gilberto e PACHECO, Vilmar. Nova Lei de Drogas:. Crimes, investigação e processo. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007. p. 25. O STJ reconheceu, tão-somente, a novatio legis in mellius, afirmando que deve o art. 28 retroagir, nos termos o art. 5º, XL, da CF e art. 2º, parágrafo único, do CP, a fim de que o usuário condenado pelo art. 16 não mais se sujeite à pena de privação de liberdade (Habeas Corpus nº 73432/MG (2006/0283417-4), 5ª Turma do STJ, Rel. Félix Fischer. j. 14.06.2007, unânime, DJ 20.08.2007).
33.      MARCÃO. Renato. Tóxicos – Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006 anotada e interpretada. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 4ª ed., 2007, p. 130.
34.      Nesse sentido, há tempos critica-a Cezar Roberto Bitencourt: "Essa lei de introdução, sem nenhuma preocupação científico-doutrinária, limitou-se apenas a destacar as características que distinguem as infrações penais consideradas crimes daquelas que constituem contravenções penais, as quais, como se percebe, restringem-se à natureza da pena de prisão aplicada." (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte Geral 1. 10ª ed. São Paulo: Saraiva. 2006, p. 263).
35.      STF, 1º Turma, RE 430105 QO/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 13.2.2007. Informativo n. 456. Brasília, 12 a 23 de fevereiro de 2007.
36.      Muita embora aceite-se a lição de Rui Barbosa, adrede transcrita, no sentido de que o STF "tem o direito de errar por último", no particular impende concorda-se com Luiz Flávio Gomes quando, ao criticar essa decisão da Suprema Corte, afirma que a "etiqueta" de "criminoso" ou "delinqüente" não ajuda, em absolutamente nada, para seu processo de recuperação ou de reinserção social (GOMES, Luiz Flávio. Para o STF, o usuário de droga é um tóxico-delinqüente . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1400, 2 maio 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9821>. Acesso em: 28 jan. 2008). Porém, observando que o "erro" foi do legislador e não do seu intérprete maior, a partir da observação feita Artur de Brito Gueiros Souza (in Espécies de sanções penais: uma análise comparativa entre os sistemas penais da frança e do Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 49, 2004, p. 09-38) sustenta-se que o usuário deve ser tratado apenas como "infrator", pois ele, na realidade, comete uma "infração penal de menor potencial ofensivo". Não se nega, todavia, que essa proposta não deixa de ser um eufemismo.
37.      GOMES, Luiz Flávio. Para o STF, o usuário de droga é um tóxico-delinqüente . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1400, 2 maio 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9821>. Acesso em: 28 jan. 2008.
38.      Hassemer faz excelente abordagem do fenômeno multifacetado que a doutrina convencionou denominar "direito penal simbólico", diferenciando-o entre o "manifesto" e o "latente". Esse acontece quando o legislador, conquanto tenha bem claro o que pretende fazer utiliza instrumentos ilusórios, com a hipócrita dissimulação do "realmente pretendido" com o "realmente realizado" (HASSEMER, Winfried. Direito Penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 2220). Claus Roxin, por sua vez, destaca que o Direito Penal simbólico manifesta-se por meio de dispositivos "que não geram, primariamente, efeitos protetivos concretos, mas que devem servir à manifestação de grupos políticos ou ideológicos através da declaração de determinados valores ou o repúdio a atitudes consideradas lesivas. Comumente, não se almeja mais do que acalmar os eleitores, dando-se, através de leis previsivelmente ineficazes, a impressão de que se está fazendo algo para combater ações e situações indesejadas". Como destaca o eminente jurista alemão, evidentemente que todas as leis têm algum efeito simbólico e nisto não há nenhum demérito, pois pretendem reforçar a consciência coletiva de respeito a determinados bens jurídicos. Ilegítimas, todavia, se mostram leis de efeitos simbólicos quando inspiradas em inconfessáveis objetivos demagógicos, o que se desvela quando o dispositivo, ainda que operante sobre a consciência comum, mostra-se desnecessário ou inócuo para a convivência pacífica no meio social (apud PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Anotações preliminares à Lei nº 11.340/06 e suas repercussões em face dos Juizados Especiais Criminais . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1169, 13 set. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8917>. Acesso em: 29 jan. 2008.). Já nos dizeres de Silva Franco, essa estratégia Estatal de tentar resolver graves problemas sociais por meio da criminalização está ligada ao "pampenalismo", ou seja, à utilização do Direito Penal como uma espécie de "panacéia para todos os males", o qual, "quando não traduz uma bastardização deste instrumento de controle social, pode representar uma completa desmoralização decorrente de sua inoperância e ineficácia" (FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: RT, 1994, p. 36-37.)
39.      Aqui adota-se a mesma orientação a no sentido de que a dosimetria judicial da pena deve sempre partir do limite penal mínimo, escólio apodíctico que, como diz o colega Pedro Rui da Fontoura Porto, "ninguém ousa jamais invectivar sob pena de ser excluído da comunidade dos conhecedores do Direito."
40.      Isso não impede que o Ministério Público, para além desse critério objetivo, dentro do seu poder discricionário, invoque outros motivos para não propor a transação penal, nos termos do art. 76, III, da Lei 9.099/95, pois a proposta desse benefício é um poder discricionário do parquet. Nesse sentido, colaciona-se o seguinte precedente do STF: "o art. 76 (como também o art. 89) da lei nova não se constitui um direito público subjetivo do réu, porém apenas mitiga o princípio da obrigatoriedade da ação penal, ao adotar o princípio da conveniência ou, segundo alguns, o princípio da discricionariedade controlada. (Recurso Extraordinário 468.161-7 - Goiás - Primeira Turma Relator: Min. Sepúlveda Pertence DJU: 31.03.2006)
41.      Por todos: Habeas Corpus nº 88785/SP, 2ª Turma do STF, Rel. Eros Grau. j. 13.06.2006, DJ 04.08.2006.
42.      A "criminalização secundária", feita pela Polícia, Ministério Público, Judiciário, imprensa e etc., é um processo de seletividade operacional relacionado com a posição social do criminoso, sendo integrada por estereótipos, preconceitos e outros mecanismos ideológicos dos agentes de controle social, e não propriamente pela gravidade do crime ou pela extensão social do dano. Nesse sentido, descreve Raúl Zaffaroni: "A inevitável seletividade operacional da criminalização secundária e sua preferente orientação burocrática (sobre pessoas sem poder e por fatos grosseiros e até insignificantes) provocam uma distribuição seletiva em forma de epidemia, que atinge apenas aqueles que têm baixas defesas perante o poder punitivo, aqueles que se tornam mais vulneráveis à criminalização secundária porque: a) suas características pessoais se enquadram nos estereótipos criminais; b) sua educação só lhes permite reações ilícitas toscas e por conseguinte, de fácil detecção e c) porque a etiquetagem suscita a assunção do papel correspondente ao estereótipo, com o qual o seu comportamento acaba correspondendo (a profecia se auto-realiza)". (ZAFFARONI. Eugênio Raúl, et alli. Direito Penal Brasileiro; Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro. Revan, 2003, p. 46). Por outro lado, também não se pode incorrer numa "discriminação às avessas", onde somente os usuários ricos ou remediados transformem-se em sujeitos passíveis de punição.
43.      Nesse sentido, por todos, o seguinte precedente: "Em caso de inadimplemento da pena de multa imposta em juízo criminal, compete à Fazenda Pública ajuizar ação de execução, ante a alteração promovida no art. 51 do Código Penal (CP) pela Lei nº 9.268/96. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento." (Agravo Regimental no Recurso Especial nº 495492/MG (2002/0163054-7), 6ª Turma do STJ, Rel. Paulo Medina. j. 06.04.2006, unânime, DJ 17.09.2007).
44.      No Estado do Rio Grande do Sul, nos termos da Lei Estadual 9.298/91, em dezembro de 2007 o valor mínimo para execução pela PGE era de R$ 2.179,49, vale dizer, multa inferior a esse valor não será executada. E mais, em virtude do disposto no art. 2º da Lei Estadual nº 12.031/03, sequer serão inscritos como Dívida Ativa da Fazenda Pública Estadual os créditos de natureza não tributária de valor igual ou inferior a 50 UPF-RS, portanto multas no valor de 1 SM permanecem em aberto no órgão de origem até a prescrição!
45.      É possível, também, que o processo seja utilizado para revogar algum benefício penal que o usuário esteja usufruindo, em sede de execução penal ou suspensão condicional da pena, por exemplo.
46.      Em dezembro de 2006, na reunião do CONCRIM do Ministério Público do Rio Grande do Sul.
47.      Efetivamente, aqui cumpre fazer eco ao Desembargador Volney de Moraes Jr., quando diz: "A condenar com vergonha é preferível absolver com desfaçatez. Não punir, quando era o caso, é caso de assombro, espanto e pasmo: sensação de que a Justiça, existente embora, não foi realizada no caso específico. Mas punir timidamente, quando era o caso de estabelecer uma justa proporção entre crime e pena, é caso de escândalo, indignação e anátema: sensação de que a Justiça existe apenas como farsa (DIP, Ricardo e MORAES JR, Volney Corrêa Leite de. Crime e castigo – reflexões politicamente incorretas. 2ª ed. Campinas: Millennium Editora. 2002, p. 19.)
48.      Por todos: BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais, Comentários à Lei 9.099 de 26.09.1995. 1º ed. RT, SP. 1996, p. 173.
49.      Por todos: HC 14666 / SP 2000/0109751-2 Relator(a) Ministro Fernando Gonçalves (1107) Órgão Julgador T6 - Sexta Turma Data do Julgamento 13/03/2001.
50.      Em apertada síntese, a epitetada "Justiça Terapêutica" é guiada pela idéia de se oferecer e obrigar o tratamento aos dependentes, como resposta estatal ao uso das drogas. Conquanto elogiada por significativa parcela da doutrina, também já foi criticada por não dar solução adequada à situação do usuário que, como adrede demonstrado, diferentemente do dependente, não carece de ser tratado como um doente, sendo acoimada de instrumento autoritário do Estado que fere a esfera de decisão do indivíduo, não passando da reformulação cíclica de uma antiga postura que reforça o binômio "doença-crime" e atende aos interesses das classes dominantes como eficaz instrumento de controle social. Alessandro Baratta é um desses críticos.
51.      Faz-se eco aqui às pertinentes e constantes críticas de Gilberto Thums e Vilmar Pacheco (THUMS, Gilberto e PACHECO, Vilmar. Nova Lei de Drogas:. Crimes, investigação e processo. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007, passim)
52.      Dentre as quais destaca-se o Relatório/Parecer 17/17/CNECV/96, sobre a liberalização da "droga" e despenalização do seu consumo, do Conselho de Ética para as Ciência da Vida de Portugal, cujo texto foi utilizado como base para esse seguimento do presente artigo, ao lado dos contributos auferidos nas outras obras consultadas.
53.      Nessa parte do presente texto, utilizou-se fundamentalmente os argumentos esposado por Sérgio de Oliveira Médici, no artigo "Incriminação do porte de substância entorpecente para uso próprio" (in Drogas, aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, p. 151-160.
54.      Entendimento que é respaldado por emblemático precedente do STF: "Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revestem de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção por parte dos órgãos estatais de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantia de terceiros." (excerto do voto do Min. Celso de Mello, por ocasião do julgamento do MS nº 23.452/RJ)
55.      Na Itália, "la legge 22 dicembre 1975, n. 685," iniciou um período de assistência aos consumidores de quantidades módicas de drogas, adotando um sistema definido de "forbice", partindo do pressuposto de que o dependente não é um delinqüente, mas um enfermo. Entretanto, em virtude da percepção de que houve aumento do uso de drogas, cedendo à política norte-americana, a "legge 26 giugno 1990, n. 162" voltou a recrudescer o tratamento do usuário, embora não seja passível de pena privativa de liberdade. Já na Espanha, em 1983, houve forte despenalização com a alteração do art. 344 do Código Penal, que podia ser considerada a mais avançado do mundo na matéria. Sem embargo, cinco anos mais tarde, o legislador veio a endurecer de novo esse artigo. Nestes cinco anos de tolerância, o mercado espanhol de cannabis sofreu um estancamento em favor de outras drogas mais pesadas graças, segundo alguns autores, ao estímulo do fruto proibido." (trecho extraído de: "Legalización del Cannabis", disponível em http://www.drogomedia.com/dossiers1_lasclaves.php?dossier=8, acesso em 29 de janeiro de 2008).
56.      HASSEMER, Winfried. Direito Penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 317.
57.      Atualmente, doutrina e jurisprudência portuguesas encontram-se diante das dificuldades jurídicas de definir a qualificação jurídica da apreensão de estupefacientes para consumo em quantidade superior a 10 doses diárias previstas nas lei, em virtude de um aparente vazio legislativo instalado na seqüência da revogação do art.40º do DL 15/93, que então incriminava o uso, operada pelo art.28º da Lei nº 30/2000. Diante dessa vexata quaestio, existem três posições fundamentais: A primeira, sustenta que a aquisição e detenção de estupefacientes para consumo cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de dez dias 10 dias pode igualmente ser punida como contra-ordenação, conforme o caso concreto (Nesse sentido: acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Setembro de 2005, proferido no processo 1831/05; de 14 de Novembro de 2001, proferido no processo 3031/01; de 15 de Março de 2006, proferido no processo 119/06; Como doutrina a favor desta interpretação, Manuel Monteiro Guedes Valente "Consumo de Drogas; Reflexões sobre o quadro legal", 3ª edição Revista e Actualizada, Almedina, 2006. A segunda corrente defende que para tais situações, deve-se utilizar o artº 40º nº 2 do D.L. nº 15/93 de 22/01, por via de interpretação restritiva do artº 28º da Lei nº 30/2000 de 29/11. Vale dizer, "ressuscita-se" o "crime de uso". Essa é a tese sufragada por Cristina Líbano Monteiro «O consumo de droga na política e na técnica legislativa», publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano II, 1° fascículo, 2001, p. 67 e Eduardo Mia Costa, Breve Nota Sobre o Regime Punitivo do Consumo de Estupefacientes(Revista do Ministério Público n° 87, ano 22, p. 147), bem como decisões de vários tribunais superiores, designadamente, como se nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Fevereiro de 2006, proferido no processo 2871/05; de 25 de Junho de 2003, proferido no processo 4089/02; de 7 de Abril de 2005, proferido no processo 446/05; A terceira corrente, por sua vez, entende que após a data de entrada em vigor do mencionado diploma, da conjugação dos arts. 21°, 25° e 40° do Decreto Lei n.° 15/93 e dos arts. 2° n°s 1 e 2, e 28 da Lei n.° 30/2000, resulta que as situações de detenção para consumo, cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de dez dias, é sancionada como tráfico, seja por via do artº 21°, seja por via do artº 25°, seja, se estiver reunido o cabido condicionalismo, por via do artº 26°, todos do Decreto Lei nº 15/93. A favor desta interpretação, temos as decisões proferidas nos seguintes arestos:- Acórdão do Tribunal Constitucional n° 295/2003, de 12 de Junho de 2003, publicado no DR. – II Série de 23 de Janeiro de 2004;- Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa (Acórdãos dos processos 5788/06 e 3926106, respectivamente de 19.12.2006 e de 17.10.2006).
58.      A partir dos contributos de Hassemer, esconde-se nessa derradeira nota o nosso cético entendimento de que não existe outra saída para o problema das drogas atualmente ilícitas, a não ser o já conhecido (porém repudiado) caminho que começa com a criminalização (estágio brasileiro), passa pela transformação do crime em ilícito administrativo (estágio português), evolui para uma permissão limitada do uso (estágio holandês) até finalmente chegarmos "à pesada tributação desses venenos", como hoje ocorre com o álcool e o tabaco (ob. cit. p.326). Entretanto, reflexões sobre uma retirada paulatina e coordenada do Direito Penal do campo das drogas não pode ser feito nos estreitos limites desse artigo, sob o risco de, levianamente sermos apontados como arautos do "frívolo direito à intoxicação". Entretanto, ousamos consignar que, dentro das possíveis "experimentações controladas" a serem realizadas no âmbito de uma nova política de drogas, a legalização e regulamentação administrativa do plantio, comércio e consumo da maconha é uma estratégia que merece ser aprofundada. Nada obstante, essa possibilidade, aqui despretensiosamente esboçada, exige, já noutra província, a continuidade e aprofundamento dos estudos sobre Direito Penal e drogas, no desiderato de buscar escorreita interpretação desse fenômeno em sua vasta complexidade.

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