PADRE VIEIRA, ILUSTRAÇÃO DO SÉCULO XVIII |
Num sermão que pregou na sexta-feira perante um auditório onde estavam membros da corte, juízes, ministros e conselheiros da Coroa, o padre Antônio Vieira, recém-chegado do Maranhão, acusou os governadores, nomeados por três anos, de enriquecerem durante o triênio, juntamente com seus amigos e apaniguados, dizendo que eles conjugavam o verbo furtar em todos os tempos, modos e pessoas.
Vale a pena transcrever um trecho do seu sermão:
- “Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos. Esses mesmos modos conjugam por todas as pessoas: porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados, e as terceiras quantos para isso têm indústria e consciência”.
Segundo Vieira, os governadores "furtam juntamente por todos os tempos".
Roubam no tempo presente , "que é o seu tempo" durante o triênio em que governam, e roubam ainda "no pretérito e no futuro". Roubam no passado perdoando dívidas antigas com o Estado em troca de propinas, "vendendo perdões" e roubam no futuro quando "empenham as rendas e antecipam os contrato, com que tudo, o caído e não caído, lhe vem a cair nas mãos".
O missionário jesuíta, conselheiro e confessor do rei, prosseguiu:
"Finalmente, nos mesmos tempos não lhe escapam os imperfeitos, perfeitos, mais-que-perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtavam, furtaram, furtariam e haveriam de furtar mais se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar, para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles como se tiveram feito grandes serviços tornam carregados de despojos e ricos; e elas ficam roubadas e consumidas".
Numa atitude audaciosa, Padre Vieira chama o próprio rei (ou a rainha) às suas
responsabilidades, concluindo:
"Em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: os teus príncipes são companheiros dos ladrões. E por que? São companheiros dos ladrões, porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e os poderes; são companheiros dos ladrões, porque talvez os defendem; e são finalmente, seus companheiros, porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo".
Os jornalistas, políticos, ministros e empresários ficaram estupefatos. Nunca antes na história deste país alguém havia falado tão claro sobre o caráter nacional.
Como o senhor sabe tanto sobre o Brasil atual, perguntaram, cheios de curiosidade. E Vieira, sorridente respondeu: "Conheço vocês de longa data, meus filhos, vocês não mudaram nada, nada. Acho até que, agora, nestes últimos oito ou nove anos, ficou muito, mas muito pior."
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TAPAJÓS E CARAJÁS: FURTO, FURTEI, FURTAREI
Prof. José Ribamar Bessa Freire
09/10/2011 - Diário do Amazonas
Essa foi a vaia mais estrondosa e demorada de toda a história da
Amazônia.
Começou no dia 4 de abril de 1654, em São Luís do Maranhão, com a
conjugação do verbo furtar, e continuou ressoando em Belém, num
auditório da Universidade Federal do Pará, na última quinta-feira, 6 de
outubro, quando estudantes hostilizaram dois deputados federais que
defendiam a criação dos Estados de Tapajós e Carajás.
A vaia, que atravessou os séculos, só será interrompida no dia 11 de
dezembro próximo, quando quase 5 milhões de eleitores paraenses irão às
urnas para votar, num plebiscito, se querem ou não a criação dos dois
Estados desmembrados do Pará, que ficará reduzido a apenas 17% de seu
atual território caso a resposta dos eleitores seja afirmativa.
A proposta de divisão territorial não é nova. Embora o fato não seja
ensinado nas escolas, o certo é que Portugal manteve dois estados na
América: o Estado do Brasil e o Estado do Maranhão e Grão-Pará, cada um
com governador próprio, leis próprias e seu corpo de funcionários.
Somente um ano depois da Independência do Brasil, em agosto de 1823, é
que o Grão-Pará aderiu ao estado independente, com ele se unificando.
Pois bem, no século XVII, a proposta era criar mais estados. Os colonos
começaram a pressionar o rei de Portugal, D. João IV, para que as
capitanias da região norte fossem transformadas em entidades autônomas. O
padre Antônio Vieira, conselheiro do rei de Portugal, D. João IV,
convenceu o monarca a fazer exatamente o contrário, criando um governo
único do Estado do Maranhão e Grão-Pará sediado inicialmente em São
Luís e depois em Belém.
Para isso, o missionário jesuíta usou um argumento singular. Ele alegava
que se o rei criasse outros estados na Amazônia, teria que nomear mais
governadores, o que dificultaria o controle sobre eles. "É mais fácil
vigiar um ladrão do que dois", escreveu Vieira em carta ao rei, de 4 de
abril de 1654: “Digo, Senhor, que menos mal será um ladrão que dois, e
que mais dificultoso será de achar dois homens de bem que um só”.
Num sermão que pregou na sexta-feira santa, já em Lisboa, perante um
auditório onde estavam membros da corte, juízes, ministros e conselheiros
da Coroa, o padre Vieira, recém-chegado do Maranhão, acusou os
governadores, nomeados por três anos, de enriquecerem durante o triênio,
juntamente com seus amigos e apaniguados, dizendo que eles conjugavam o
verbo furtar em todos os tempos, modos e pessoas. Vale a pena transcrever
um trecho do seu sermão:
- “Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do
governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos.
Esses mesmos modos conjugam por todas as pessoas: porque a primeira pessoa
do verbo é a sua, as segundas os seus criados, e as terceiras quantos para
isso têm indústria e consciência”.
Segundo Vieira, os governadores "furtam juntamente por todos os tempos".
Roubam no tempo presente , "que é o seu tempo" durante o triênio em que
governam, e roubam ainda "no pretérito e no futuro". Roubam no passado
perdoando dívidas antigas com o Estado em troca de propinas, "vendendo
perdões" e roubam no futuro quando "empenham as rendas e antecipam os
contrato, com que tudo, o caído e não caído, lhe vem a cair nas mãos".
O missionário jesuíta, conselheiro e confessor do rei, prosseguiu:
"Finalmente, nos mesmos tempos não lhe escapam os imperfeitos, perfeitos,
mais-que-perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtavam, furtaram,
furtariam e haveriam de furtar mais se mais houvesse. Em suma, que o resumo
de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a
furtar, para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e
as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles como se tiveram
feito grandes serviços tornam carregados de despojos e ricos; e elas ficam
roubadas e consumidas".
Numa atitude audaciosa, Padre Vieira chama o próprio rei às suas
responsabilidades, concluindo:
"Em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos
príncipes de Jerusalém: os teus príncipes são companheiros dos
ladrões. E por que? São companheiros dos ladrões, porque os dissimulam;
são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são companheiros dos
ladrões, porque lhes dão os postos e os poderes; são companheiros dos
ladrões, porque talvez os defendem; e são finalmente, seus companheiros,
porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos
ladrões os levam consigo".
Os dois novos Estados – Carajás e Tapajós – se criados, significa m
mais governadores, mais deputados, mais juizes, mais tribunais de contas,
mais mordomias, mais assaltos aos cofres públicos.
Por isso, o Conselho Indígena dos rios Tapajós e Arapiuns, sediado em
Santarém, representando 13 povos de 52 aldeias, se pronunciou criticamente
em relação à proposta. Em nota oficial, esclarece:
"Os indígenas, os quilombolas e os trabalhadores da região nunca
estiveram na frente do movimento pela criação do Estado do Tapajós,
porque essa não era sua reivindicação e também porque não eram
convidados. Esse movimento foi iniciado e liderado nos últimos anos por
políticos. E nós temos aprendido que o que é bom para essa gente
dificilmente é bom para nós.”
PS.
Este é um artigo sobre a divisão do Estado do Pará, com uma análise feita pelo professor José R.B. Freire, que nos remete aos tempos de Padre Antônio Vieira e seus famosos sermões.
O professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa de
Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de
Pós-Graduação em Memória Social (UNI RIO).
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