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terça-feira, 17 de maio de 2011

VERÔNICA E JOÃO DO RIO. HISTÓRIAS DO COTIDIANO. O CRIME NO MOTEL

Flanar pelo noticiário, como João do Rio flanava pelas ruas calçadas com pedra do Rio Antigo. Rua do Ouvidor. Os primeiros raros barracos nos morros. Bélle Époque, os sinais da modernidade chegando ao Brasil. 


Observar as pessoas, procurar compreender seus hábitos, entender seus costumes e manias.


Não consigo pensar em Verônica Verone, a menina-mulher de 18 anos de idade que destruiu a sua própria vida ao destruir a vida de Fábio Gabriel Rodrigues, seu amante eventual, sem pensar em João do Rio.

Essa história é atemporal, universal, crônica para João do Rio, ou para o mestre das mazelas da classe media, Nelson Rodrigues.

Uma menina de família estável,  alegre, meio chegada à vida boemia, a Loura da Lapa, como era chamada pelos amigos e colegas da escola onde estudava.

Uma menina meio sem compromissos, que deixava os admiradores eletrificados.

 Provavelmente. bonita como é, com aqueles olhos azuis-acinzentados faiscantes,  Fábio não conseguiu resistir, apesar do dobro de sua idade. 


Segundo informa a imprensa, começaram a sair, passear, namorar. Talvez as coisas começassem a ficar complicadas em casa, com a família. 

Como explicar pernoites no Copacabana Palace ou boates em Búzios? E a mulher e os dois filhos esperando, talvez? O serviço, muito serviço, o lava-jato. Os carros. Os carros.

Verônica foi criada num casa de três pavimentos em  Marica, numa rua paralela à de fábio. 


Deve ter sido inevitável olhar para Verônica e não perceber sua beleza. Irresistível, talvez. Impossível não notá-la.

Um detalhe das matérias publicadas me chamou a atenção neste caso.

Verônica parece uma pessoa só. Não sei se é um estratégia do advogado em combinação com a família, mas ela não esteve, até agora, acompanhada por alguém da família. Só com o advogado.

Pode ser para não haver exposição indevida. Mas como deixar uma filha doente assim sozinha? Não é um julgamento, apenas um certo espanto.


O pai morreu, ela tem uma irmã mais velha, advogada, a mesma que ligou para o motel Status para saber de Fábio. Ele estava morto.

Matéria do Extra informa que a mãe sabia das saídas delas com o “namorado”
Talvez ela o conhecesse do bairro. Talvez achasse que ele já não estivesse com a esposa, ou que estivesse separado.

Ele tinha 33, ela 18. Quando se conheceram ele tinha mais de 30 e ela  uns 16 ou 17. Ou poderia nem saber muita coisa sobre a vida dele. Talvez fosse apenas bom dia, boa tarde. Um rapaz educado.

Há algum tempo, conta a reportagem do Extra, o Fábio teria visto Verônica beijando um rapaz, o que o teria incomodado, chegando a conversar sobre isso com a mãe dela. Se isso for verdade, então ela a conhecia e ela confiava nele. Ou esperava por algo mais sério, um compromisso, talvez. Mães são sempre protetoras.

Nada demais,  a mãe querendo que sua filha fosse feliz com um sujeito mais experiente. Isso me fez lembrar uma das histórias de João do Rio, o imenso cronista carioca.


Quando os primeiros automóveis começaram a chegar ao Rio de Janeiro e a desfilar lentamente pelas ruas esburacadas, deixando à mostra seus condutores, muitas mães levavam suas filhas, nas melhores roupas de domingo, às proximidades de uma sorveteria famosa, por onde circulavam os carros e seus jovens proprietários.

Quem sabe? Um aceno de lenço, um sorriso. Um namoro, casamento. Quem sabe?

Humano, apenas extremamente humano.      

A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS

JOÃO DO RIO

A RUA

Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se
não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é
partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades,
nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia,
mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e
indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma,
tudo varia — o amor, o ódio, o egoísmo.

Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, Os
séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e
fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.
A rua! Que é a rua? Um cançonetista de Montmartre fá-la dizer:

Je suís la rue, femme êternellement verte,
Je n’ai jamais trouvé d’autre carrière ouverte
Sinon d’être la rue, et, de tout temps, depuis
Que ce pénible monde est monde, je la suis...

A verdade e o trocadilho! Os dicionários dizem: “Rua, do latim ruga, sulco. Espaço entre
as casas e as povoações por onde se anda e passeia”. E Domingos Vieira, citando as
Ordenações: “Estradas e rua pruvicas antiguamente usadas e os rios navegantes se som cabedaes
que correm continuamente e de todo o tempo pero que o uso assy das estradas e ruas pruvicas”.
A obscuridade da gramática e da lei! Os dicionários só são considerados fontes fáceis de
completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte
enciclopédias, manuseei in-folios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um
alinhado de fachadas por onde se anda nas povoações.

Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! Em
Benares ou em Amsterdão, em Londres ou Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais

variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o
auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso
dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. Não paga ao Tamagno para ouvir berros
atenorados de leão avaro, nem à velha Patti para admitir um fio de voz velho, fraco e legendário.
Bate, em compensação, palmas aos saltimbancos que, sem voz, rouquejam com fome para
alegrá-la e para comer. A rua é generosa.

O crime, o delírio, a miséria não os denuncia ela. A rua
é a transformadora das línguas. Os Cândido de Figueiredo do universo estafam-se em juntar
regrinhas para enclausurar expressões; os prosadores bradam contra os Cândido. A rua continua,
matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários as
palavras que inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico dos léxicons futuros. A rua
resume para o animal civilizado todo o conforto humano. Dá-lhe luz, luxo, bem-estar,
comodidade e até impressões selvagens no adejar das árvores e no trinar dos pássaros.

A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do
seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres, e haveis de
ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor,
uma melopéia tão triste que pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente nos nervos essa
miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras
humanas.

A rua criou todas as blagues todos os lugares-comuns. Foi ela que fez a majestade dos
rifões, dos brocardos, dos anexins, e foi também ela que batizou o imortal Calino. Sem o
consentimento da rua não passam os sábios, e os charlatães, que a lisonjeiam lhe resumem a
banalidade, são da primeira ocasião desfeitos e soprados como bolas de sabão. A rua é a eterna
imagem da ingenuidade. Comete crimes, desvaria à noite, treme com a febre dos delírios, para
ela como para as crianças a aurora é sempre formosa, para ela não há o despertar triste, quando o
sol desponta e ela abre os olhos esquecida das próprias ações, é, no encanto da vida renovada, no
chilrear do passaredo, no embalo nostálgico dos pregões — tão modesta, tão lavada, tão risonha,
que parece papaguear
com o céu e com os anjos...

A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo universal, tipo que vive em
cada aspecto urbano, em cada detalhe, em cada praça, tipo diabólico que tem dos gnomos e dos
silfos das florestas, tipo proteiforme, feito de risos e de lágrimas, de patifarias e de crimes
irresponsáveis, de abandono e de inédita filosofia, tipo esquisito e ambíguo com saltos de felino
e risos de navalha, o prodígio de uma criança mais sabida e cética que os velhos de setenta
invernos, mas cuja ingenuidade é perpétua, voz que dá o apelido fatal aos potentados e nunca
teve preocupações, criatura que pede como se fosse natural pedir, aclama sem interesse, e pode
rir, francamente, depois de ter conhecido todos os males da cidade, poeira d’ouro que se faz
lama e torna a ser poeira — a rua criou o garoto!

Essas qualidades nós as conhecemos vagamente. Para compreender a psicologia da rua
não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter
espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo
incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos
esportes — a arte de flanar. É fatigante o exercício?

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