Muitas vezes, ao longo da vida, pensei sobre a questão do aborto. Sim ou não? Embora de família de formação católica, batizado e crismado, diante de certos fatos aparentemente cruéis da realidade imaginei não ser de todo descabido optar pelo aborto.
Nunca por razões econômicas, mas naquela situações em que os pais são informados, com razoável grau de certeza de que seu filho nascerá com sérias lesões. Abortar: sim ou não?
Mesmo assim, nunca me pareceu muito simpático, ético ou estético impedir alguém de viver. Defensores do aborto, por vezes, defendem o direito da mãe ao próprio corpo. Sim, concordo. O corpo é da mãe, e daí? O embrião, o feto, o filho é mero adereço? É propriedade materna?
Passaria pela cabeça de alguém matar o próprio filho de dez, 12 ou 14 anos de idade por dar muito trabalho e andar metido com drogas? Os casos em que isso aconteceu foram exceções, quando o filho drogado atacou a mãe, por exemplo, para matar. Então o pai reagiu mortalmente; deve ser uma decisão terrível...
Parece certo um governo decidir que seus cidadãos não podem ter filhos ou filhas além de um limite, por razões econômicas? Não lhes parece uma barbaridade?
Um dos grande valores da civilização cristã é a solidariedade, o apoio ao outro, ao fraco, ao doente. Optar pelo aborto em nome da Economia ou de motivos egoísticos como apelar para o fato do corpo da mulher ser seu (é claro que é!) e permitir a morte de crianças não nascidas (fetos são crianças ainda não nascidas) é voltar aos tempos pagãos.
Aliás, o afastamento dos valores da cristandade, como civilização, é que nos aproxima de aspectos tenebrosos do passado, em que fetos eram nada, e podiam ser vistos de forma pragmática, como o faziam os espartanos ao matarem suas crianças aleijadas que não conseguiriam ser soldados úteis a Esparta. Elas eram jogadas montanha abaixo para morrer.
Trabalho com alunos há dezenas de anos. Últimamente chegam à universidade alunos com deficiências aparentemente graves, que nunca havia visto em sala de aula, mas é notável observar a sagacidade, a curiosidade, a capacidade de aprendizado de alguns deles, apesar de todas as suas dificuldades motoras e de expressão.
Pelo desejo dos abortistas, estariam todos mortos. Ainda bem que seus pais não pensaram assim.
GUTENBERG J.
BAÚ DE TEXTOS
Desejo de matar
Olavo de Carvalho
Amigos e leitores pedem-me uma opinião sobre o aborto. Mas, inclinado por natureza à economia de esforço, meu cérebro se recusa a criar uma opinião sobre o quer que seja, exceto quando encontra um bom motivo para fazê-lo. Diante de um problema qualquer, sua reação instintiva é apegar-se ferozmente ao direito natural de não pensar no caso. Mas, ao argumentar em favor desse direito, ele acaba tendo de se perguntar por que afinal existe o maldito problema. Assim, o que era uma tentativa de não pensar acaba por se tornar uma investigação de fundamentos, isto é, o empreendimento mais filosófico que existe. Os futuros autores de biografias depreciativas dirão, com razão, que me tornei filósofo por mera preguiça de pensar. Mas, como a preguiça gradua os assuntos pela escala de atenção prioritária mínima, acabei por desenvolver um agudo sentimento da diferença entre os problemas colocados pela fatalidade das coisas e os problemas que só existem porque determinadas pessoas querem que existam.
Ora, o problema do aborto pertence, com toda a evidência, a esta última espécie. O questionamento do aborto existe porque a prática do aborto existe, e não ao contrário. Que alguém decida em favor do aborto é o pressuposto da existência do debate sobre o aborto. Mas o que é pressuposto de um debate não pode, ao mesmo tempo, ser a sua conclusão lógica. A opção pelo aborto, sendo prévia a toda discussão, é inacessível a argumentos. O abortista é abortista por decisão livre, que prescinde de razões. Essa liberdade afirma-se diretamente pelo ato que a realiza e, multiplicado por milhões, se torna liberdade genericamente reconhecida e consolidada num "direito". Daí que o discurso em favor do aborto evite a problemática moral e se apegue ao terreno jurídico e político: ele não quer tanto afirmar um valor, mas estatuir um direito (que pode, em tese, coexistir com a condenação moral do ato).
Quanto ao conteúdo do debate, os adversários do aborto alegam que o feto é um ser humano, que matá-lo é crime de homicídio. Os partidários alegam que o feto é apenas um pedaço de carne, uma parte do corpo da mãe, que deve ter o direito de extirpá-lo à vontade. No presente score da disputa, nenhum dos lados conseguiu ainda persuadir o outro. Nem é razoável esperar que o consiga, pois, não havendo na presente civilização o menor consenso quanto ao que é ou não é a natureza humana, não existem premissas comuns que possam fundamentar um desempate.
Mas o empate mesmo acaba por transfigurar toda a discussão: diante dele, passamos de uma disputa ético-metafísica, insolúvel nas presentes condições da cultura ocidental, a uma simples equação matemática cuja resolução deve, em princípio, ser idêntica e igualmente probante para todos os seres capazes de compreendê-la. Essa equação formula-se assim: se há 50% de probabilidades de que o feto seja humano e 50% de probabilidades de que não o seja, apostar nesta última hipótese é, literalmente, optar por um ato que tem 50% de probabilidades de ser um homicídio.
Com isso, a questão toda se esclarece mais do que poderia exigi-lo o mais refratário dos cérebros. Não havendo certeza absoluta da inumanidade do feto, extirpá-lo pressupõe uma decisão moral (ou imoral) tomada no escuro. Podemos preservar a vida dessa criatura e descobrir mais tarde que empenhamos em vão nossos altos sentimentos éticos em defesa do que não passava, no fim das contas, de mera coisa. Mas podemos também decidir extirpar a coisa, correndo o risco de descobrir, tarde demais, que era um ser humano. Entre a precaução e a aposta temerária, cabe escolher? Qual de nós, armado de um revólver, se acreditaria moralmente autorizado a dispará-lo, se soubesse que tem 50% de chances de acertar numa criatura inocente? Dito de outro modo: apostar na inumanidade do feto é jogar na cara-ou-coroa a sobrevivência ou morte de um possível ser humano.
Chegados a esse ponto do raciocínio, todos os argumentos pró-aborto tornaram-se argumentos contra. Pois aí saímos do terreno do indecidível e deparamos com um consenso mundial firmemente estabelecido: nenhuma vantagem defensável ou indefensável, nenhum benefício real ou hipotético para terceiros pode justificar que a vida de um ser humano seja arriscada numa aposta.
Mas, como vimos, a opção pró-aborto é prévia a toda discussão, sendo este o motivo pelo qual o abortista ressente e denuncia como "violência repressiva" toda argumentação contrária. A decisão pró-aborto, sendo a pré-condição da existência do debate, não poderia buscar no debate senão a legitimação ex post facto de algo que já estava decidido irreversivelmente com debate ou sem debate. O abortista não poderia ceder nem mesmo ante provas cabais da humanidade do feto, quanto mais ante meras avaliações de um risco moral. Ele simplesmente deseja correr o risco, mesmo com chances de zero por cento. Ele quer porque quer. Para ele, a morte dos fetos indesejados é uma questão de honra: trata-se de demonstrar, mediante atos e não mediante argumentos, uma liberdade autofundante que prescinde de razões, um orgulho nietzschiano para o qual a menor objeção é constrangimento intolerável.
Creio descobrir, aí, a razão pela qual meu cérebro se recusava obstinadamente a pensar no assunto. Ele pressentia a inocuidade de todo argumento ante a afirmação brutal e irracional da pura vontade de matar. É claro que, em muitos abortistas, esta vontade permanece subconsciente, encoberta por um véu de racionalizações humanitárias, que o apoio da mídia fortalece e a vociferação dos militantes corrobora. Porém é claro também que não adianta nada argumentar com pessoas capazes de mentir tão tenazmente para si próprias.
Jornal da Tarde, 22 de janeiro de 1998
TEXTO DE OLAVO DE CARVALHO REPRODUZIDO DO SITE MÍDIA SEM MÁSCARA:
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