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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

PROCURAR A SOPA NOUTRAS PANELAS. Ou: crescer dói.

RECUPERANDO TEMAS PARA REFLEXÃO

As crianças de Atenas
João Pereira Coutinho
Estive em Atenas uma única vez na vida. Fui roubado. Literalmente. Verdade que também fui roubado no Brasil, na Espanha e no Egito. Desconfio que deve existir uma organização criminosa internacional que entra em alerta máxima sempre que eu me preparo para viajar. "Atenção: otário em movimento. Ataquem".

Mas o roubo em Atenas foi diferente. Foi, digamos, indolor: não houve armas (como no Brasil), não houve vidro do carro partido (como em Espanha) e não houve coação física (como no Egito). Depois de um jantar a dois passos da praça Syntagma (a única praça da capital grega que parece civilizada), lancei a mão à carteira e descobri o bolso do casaco vazio. Passei os oito dias seguintes (quatro em Atenas, quatro nas ilhas) com dinheiro emprestado e uma garrafa diária de retsina.

Lembro tudo isso porque a Grécia voltou a ocupar os noticiários. Alguns dias atrás, a polícia matou um rapaz de 15 anos. Nas duas semanas que se seguiram, jovens descontentes com o estado do mundo e com o estado da Grécia resolveram "vingar" a morte do companheiro e verter a raiva incontida em lojas, carros e policiais. Diz a imprensa que os prejuízos rondam os 130 milhões de dólares e, pior, estão longe de acabar: resguardados no Politécnico de Atenas, espaço onde a polícia não entra por determinação constitucional (os estudantes tiveram papel heróico no derrube da ditadura e isso garante-lhes certas prerrogativas espaciais), eles transformaram o Politécnico em "embaixada" e aí preparam as bombas que lançam quando a noite cai. Perfeito.

Os especialistas explicam o drama. E afirmam, inteiramente a sério, que existem "razões" ponderosas para deitar fogo à cidade. A corrupção do governo; a mediocridade do seu sistema de ensino; uma taxa de desemprego próxima dos dois dígitos --tudo isso ajuda à festa dos bárbaros. E depois temos a terrível "globalização", esse velho fantasma das cabeças primitivas, que transporta no seu dorso a crise financeira mundial.

Não acreditem nessas rábulas: a Grécia é um parceiro respeitável da União Européia e o governo de Atenas não se distingue particularmente dos governos burocráticos da União, que ratificam o que Bruxelas decide.

O problema está numa geração que nasceu e cresceu à sombra do Estado de Bem Estar Social, essa herança da Grande Depressão que o fim da Segunda Guerra tornou praticamente universal. Um Estado que vela pelos seus cidadãos do berço até à cova e que, precisamente por isso, os infantiliza durante uma vida inteira.

Quando vejo os pequenos selvagens da Grécia, é impossível não perceber o drama central desses meninos: habituados ao conforto e à segurança de um Estado que os trata como menores, eles continuam a esperar da entidade paternal o manto protetor das suas existências: no ensino, na saúde, no trabalho, na habitação, no consumo, na educação dos filhos e até, quem sabe, no fabrico deles. Inevitável: educados na dependência, eles não se distinguem dos mais básicos dependentes.

Infelizmente para eles, para a Grécia e para a Europa, o pai dá sinais de falência e os filhos terão que procurar a sopa noutras panelas. A violência de Atenas, que a prazo se espalhará pelas restantes cidades do continente, faz parte do processo. Crescer dói.

Artigo originalmente publicado na Folha Online.
João Pereira Coutinho

18/12/2008

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