ARQUIVO DE TEXTOS
O FUTURO DA
LIBERDADE
Olavo de Carvalho
O Globo, 21 de outubro de 2000
FRANÇOIS FURET |
Na sua última entrevista, publicada postumamente em setembro
de 1997, François Furet dizia que o maior problema da sociedade
liberal-capitalista é sua dificuldade de construir um corpo político, pois a
idéia mesma que funda o liberalismo, a doutrina da autonomia individual,
resiste a encarnar-se na forma de uma estrutura política, de um Estado.
O sucesso do comunismo e do fascismo, prosseguia o historiador, deveu-se ao fato de que, em contraste com essa incapacidade crônica do liberalismo, pensavam o corpo social como unidade e davam a essa unidade uma expressão política também unitária, por meio do Partido-Estado.
O sucesso do comunismo e do fascismo, prosseguia o historiador, deveu-se ao fato de que, em contraste com essa incapacidade crônica do liberalismo, pensavam o corpo social como unidade e davam a essa unidade uma expressão política também unitária, por meio do Partido-Estado.
Esse diagnóstico fornece a melhor explicação para o fato de
que no próprio seio do liberalismo as tendências centralizadoras e estatizantes
ressurgem ciclicamente sob novas roupagens e novas denominações, algumas delas
diabolicamente enganosas porque alegam inspirar-se nos próprios ideais do
liberalismo.
A constatação desse estado de coisas sugere automaticamente
uma pergunta: uma sociedade politicamente centrífuga não tem outra alternativa
senão ceder de vez às ofertas de unificação totalitária ou viver eternamente de
arranjos de ocasião entre a liberdade de jure e as concessões de facto a um
crescente poder centralizador?
Furet não dá nenhuma resposta, mas passa de raspão por ela e
nem percebe que é uma resposta. A dificuldade de encontrar uma fórmula
política, segundo ele, manifestou-se da maneira mais patente naquela sucessão
de crises que foi a Revolução Francesa, ao passo que "permaneceu escondida
no caso da Revolução Americana, revolução demasiado fácil, transcorrida sob as
bênçãos da religião a um povo cristão, que não teve a necessidade de renegar um
passado aristocrático e feudal e teve ainda a sorte de encontrar uma centena de
grandes homens políticos".
Não é muito certo dizer que os americanos tiveram
"dificuldade" de encontrar uma fórmula política. O que eles tiveram
foi uma profunda indiferença pela busca dessa fórmula. O testemunho é de Aléxis
de Tocqueville: meio século depois da independência, as pequenas comunidades,
núcleos da vida americana, ainda se orgulhavam de viver à margem de toda
autoridade central, unidas às comunidades vizinhas tão-somente pelos laços de
comércio, religião e cultura.
A dificuldade apareceu mais tarde e, de certo
modo, artificialmente. Apareceu por iniciativa da própria classe política, que
buscou forçar a unificação jurídico-administrativa do país, condição prévia
para a consecução dos grandes planos imperiais que tinha em vista. Conforme
assinalei em meu livro "O jardim das aflições" (cinco anos antes da
dupla Negri & Hardt a quem a nossa intelectualidade símia credita essa
descoberta), as ambições centralizadoras e imperialistas germinavam no espírito
dessa classe já antes mesmo da Revolução e cresceram inteiramente por fora das
aspirações da sociedade americana, a qual, sendo indiferente ao Estado, teria
de sê-lo mais ainda ao crescimento dele para além-fronteiras.
Se essa sociedade pôde evitar os conflitos que viriam a
marcar a História da França, foi graças a três fatores. Primeiro, a religião,
uma religião tanto mais arraigada na alma do povo quanto mais livre da
contaminação estatal, pois fora justamente para proteger seu culto religioso de
toda interferência governamental que os pioneiros tinham vindo para o Novo
Mundo.
Essa religião, popular e extra-oficial, mas ao mesmo tempo conservadora
e apegada às tradições, dava aos americanos sua unidade moral, mais funda e
decisiva que qualquer unidade política. Em segundo lugar, a economia. Sua base,
religiosa até à medula, era a "sociedade de confiança" de que fala
Alain Peyrefitte, ou a "ethics of loyalty" enaltecida por Josiah
Royce: a liberdade de comprar e vender, fundada na comum expectativa da
lealdade espontânea de todos para com todos.
Por fim, a cultura. Até hoje a elite americana - presidentes
de empresas, oficiais do Exército, homens de letras - provém de uns 200
colégios particulares, que, desprezando os supostos avanços tão afoitamente
assimilados pela pedagogia estatal, conservaram quase intacto o método
educacional de antes da Revolução, baseado nos "três rr" - reading,
writing, arithmetics - e na leitura dos clássicos: a boa e velha liberal
education. Esse método produziu a "centena de grandes homens" que
decidiu o destino da América.
Religião livremente fiel às tradições, economia sã fundada
na moral religiosa e uma elite de homens conscientes dos valores básicos da
civilização: eis os três fatores que puderam superar a contradição entre
liberalismo e estrutura política, poupando ao povo americano os fracassos
sangrentos da Revolução Francesa.
Pois esta, em contrapartida, ocorreu numa
sociedade onde a religião era burocratizada e infectada de mundanismo, a
economia era centralizada pelo Estado sanguessuga e a cultura era um festival de
insanidades, obra da nova classe intelectual leviana e fútil, vaidosa e cheia
de afetado desdém pelo que estivesse acima da sua compreensão. Não podendo
apostar nem na religião, nem na cultura, nem na economia, a França arriscou
tudo - e tudo perdeu - na busca insana do corpo político perfeito.
Eis aí a lição que François Furet nos deu sem perceber: o
futuro de uma sociedade baseada na liberdade individual não depende do utópico
e insaciável "aperfeiçoamento das instituições", mas da religião
sincera, da ética nos negócios e da formação intelectual da elite: de tudo
aquilo, enfim, que é desprezado por um país louco que, à imitação da França
revolucionária, deposita todas as suas esperanças na política e no Estado.
TEXTO REPRODUZIDO DO SITE DO FILÓSOFO OLAVO DE CARVALHO:
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