sábado, 14 de maio de 2011
O país dos impuros
Por Demétrio Magnoli
A divulgação das estatísticas de cor da pele do Censo 2010 revelou redução da população que se autodeclara branca, de 53,7% em 2000 para 47,7% no ano passado, e aumento paralelo da soma das populações autodeclaradas pardas e pretas, de 44,7% para 50,7%. Paula Miranda-Ribeiro, professora de demografia da UFMG, saudou a mudança: “O Brasil está mais preto, algo mais próximo da realidade. É a chamada desejabilidade social.
Historicamente, pretos e pardos eram desvalorizados socialmente, o que fazia com que pretos desejassem ser pardos, e pardos, brancos. Agora, pretos e pardos quiseram se identificar assim.”
A demógrafa embute no diagnóstico duas presunções distintas, mas complementares. A primeira: os censos não refletiam a “realidade”, mas agora, aos poucos, uma verdade étnica começa a se impor. A segunda: nos censos anteriores, pretos se faziam passar por pardos e pardos se faziam passar por brancos, de modo que o Brasil conhecia um processo de ilusório “branqueamento”, finalmente revertido.
Tudo se passa como se ela tivesse extraído suas conclusões de uma rigorosa análise da série censitária. De fato, porém, as conclusões derivam de uma doutrina política — e só podem sobreviver às custas do ocultamento da série estatística dos censos.
Não acredite em acadêmicos que têm uma causa: eles mentem em nome dela. Efetivamente, a proporção de “brancos” na população brasileira conhece redução incessante, de censo para censo, desde 1940. Naquele censo, os “brancos” constituíam 63,5% do total, uma proporção que caiu para 61% em 1960 e 54,2% em 1980. A acusação de que os “pardos” se transfiguravam em “brancos” é falsa: a participação desse grupo no total saltou de 21,2% em 1940 para 29,5% em 1960 e 38,8% em 1980.
A demógrafa não desconhece tal informação, hoje acessível a qualquer um com acesso à internet. Mas, por razões definidas, ela prefere divulgar uma lenda sobre o “branqueamento”.
A “pardização” da sociedade brasileira não decorre apenas do antigo e crescente processo de miscigenação, mas reflete nítidas atitudes culturais. Um estudo estatístico comparativo dos censos de 1950 e 1980 investigou a reclassificação de cor, em 1980, das pessoas de mais de 30 anos — ou seja, das faixas etárias também recenseadas em 1950.
Provou-se que uma significativa migração para a categoria “pardos” envolveu tanto “pretos” quanto “brancos”. Miranda-Ribeiro tem o direito de construir a hipótese de que um estigma racial impelia as pessoas a rejeitarem o rótulo “preto”. Mas, nesse caso, a honestidade obrigaria a formular a hipótese paralela de que um outro estigma racial induzia as pessoas a recusarem o rótulo “branco”. Isso, contudo, destruiria um dogma nuclear do pensamento racial.
Na margem, os dados do último censo mostram um desvio discreto em relação à trajetória histórica. A população autodeclarada “preta”, que retrocedera de 14,6% em 1940 para 5,9% em 1980, cresceu de 6,2% em 2000 para 7,6% em 2010. O movimento de reclassificação talvez seja uma resposta sociológica ao estímulo estatal dos programas de cotas raciais nas universidades e das projetadas preferências raciais no serviço público e no mercado de trabalho.
Nessa hipótese, a “valorização étnica” sonhada pelos arautos das políticas de raça se traduziria por um reposicionamento tático de indivíduos que, mesmo se absolutamente indiferentes aos hinos marciais do “orgulho racial”, temem perder oportunidades concretas de ascensão social.
O desvio na margem não altera o sentido geral da narrativa censitária. O Brasil não ficou especialmente “mais preto” no decênio passado, mas insiste — há no mínimo sete décadas — em se enxergar sempre como mais “pardo”. No espelho das identidades, os brasileiros tendem a rejeitar as duas classificações polares, preferindo termos que exprimem a mistura.
Na Pesquisa por Amostra de Domicílios de 1976, quando se tabularam as respostas espontâneas, 37,2% dos entrevistados optaram pela categoria de cor “morena” e suas variações diretas e outros 7,6% declararam-se “pardos”. A soma daria quase 45%, ultrapassando a categoria “brancos” (41,9%).
A mensagem censitária enviada pelos brasileiros é: somos impuros, misturados, irredutíveis às classificações inventadas pelo pensamento racial. Repetida agora, a mensagem representa uma derrota para as ONGs que agitam a bandeira das políticas de raça e para o governo que as segue. Eis o motivo pelo qual os acadêmicos que têm uma causa sentem a irrefreável compulsão de reinterpretar criativamente os resultados dos censos, mesmo violando as regras básicas das ciências sociais. É dessa compulsão que nasce a categoria “negros”, fruto da fusão arbitrária das colunas “pardos” e “pretos”.
Censos são ferramentas de políticas de poder baseadas em identidades étnicas e religiosas. Nos EUA, serviram para delimitar as vítimas da segregação racial oficial. Na África do Sul do apartheid, foram usados para produzir divisões no interior da maioria negra da população. No Líbano, sustentam o jogo de conflitos e reconciliações entre as elites muçulmanas e cristãs. Na Nigéria, no Quênia, na Costa do Marfim ajudam os clãs dirigentes a insuflar tóxicas rivalidades étnicas.
Tenho uma ideia para descontaminar nosso censo de fluidos racialistas: substituir a categoria “pardos” pelo popular termo “morenos”. Junto, com o intuito de testar a aceitação do rótulo imposto de cima para baixo pelos adoradores da bipolaridade racial, a categoria “pretos” seria substituída por “negros” ou por “afrodescendentes”.
Os resultados decepcionariam os doutrinários da raça e, logo, alguém sensato daria razão a Haddock Lobo que, considerando indignas da condição humana as classificações raciais, rejeitou a inclusão de um item sobre cor ou raça no censo do Rio de Janeiro de 1849. Exatamente por isso, desconfio que minha sugestão não será nem mesmo examinada.
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