BAÚ DE TEXTOS
O texto a seguir, publicado na revista Época, no ano 2000, 11 anos!, poderia ser tomado como um indicador seguro de como a situação intelectual no Brasil piora sempre mais. Sempre mais miserável.
Em primeiro lugar, no final dos anos 90, Olavo de Carvalho publicava seus textos em diversos veículos, como Zero Hora, Jornal da Tarde, O Globo e revistas Época e Bravo. Há algum tempo escreve apenas para o Diário do Comércio, de São Paulo. Apenas não diminui, em absoluto, a importância e a coragem do veículo, pois o que foi mostrado é a diminuição do espaço para alguém como o filósofo é uma prova de que há uma teia hegemônica de esquerda emburrecida e impermeável a ideias diferentes e à própria crítica.
É claro que isso não significa que Olavo de Carvalho não tenha leitores, ao contrário, criou, pelo seu trabalho de décadas, um espaço próprio, e é lido e levado a sério por milhares de pessoas. E isso parece render frutos, graças a Deus, embora talvez não possa ser bem notado ou mensurado na chamada mídia tradicional.
Em segundo lugar, o texto, atual, vivo, pulsante, contrasta com o ambiente idiotizado pelo politicamente correto, pelo multiculturalismo, pelo relativismo cultural e, pior, pela destruição da visão cristã, central na sociedade ocidental. A cada ano a aumenta a abstração do indivíduo, em troca do coletivismo, do grupo cultural, e das minorias como unidades. Não há mais espaço para a compaixão.
Da piedade ao orgulho
Olavo de Carvalho
Época, 7 de outubro de 2000
Época, 7 de outubro de 2000
O trajeto do catolicismo de esquerda termina na beatificação do Mal
“Lênin era completamente indiferente ao sofrimento humano, que só o comovia quando apto a sublinhar seu ódio ao capitalismo.” Quem diria que essa observação de Franz Borkenau sobre o inimigo jurado do cristianismo viria um dia a poder aplicar-se, ipsis litteris, aos sacerdotes da Igreja de Cristo?
No entanto, quem ler as declarações de certos bispos brasileiros nos últimos anos haverá de reparar que, nelas, a piedade e a compaixão, longe de ocupar o centro e o topo de seu universo de valores, estão sempre subordinadas a um projeto político, reduzidas a instrumentos e adornos retóricos da luta de classes: não é qualquer sofrimento que merece a atenção dessa gente – é só aquele que, exposto, sirva para despertar o ódio e a revolta contra o governo, os ricos ou o FMI.
Isso é empiricamente verificável por simples análise textual, e basta para comprovar que tais indivíduos não são cristãos nem mesmo num sentido remoto e figurado da palavra. São simplesmente comunistas. São movidos pela mesma ambição milenarista que tornava Lênin tão insensível ao padecimento alheio quanto sensível às oportunidades de aproveitá-lo politicamente.
Compaixão é sofrer junto, é partilhar de uma dor que nem sempre se pode aliviar. É afeição que não entra em nosso peito sem trazer consigo a lembrança de nossa fragilidade, portanto a exigência incontornável da humildade e da paciência. Um dos atrativos mágicos do socialismo é justamente a perspectiva de nos libertar desse sentimento constrangedor, absorvendo-o e superando-o na síntese moral de um serviço prestado à História. O Bem, aí, identifica-se com a vitória sobre o presente, com a criação do “mundo melhor”.
A convicção de servir ativamente a esse Bem infunde no homem tamanho amor-próprio que ele já não precisa das virtudes passivas, restos sombrios de uma era de submissão e impotência.
Por isso o comunista não se deixa afetar pelo sofrimento de seus contemporâneos. Ele já lhes deu o que há de melhor: sua luta pelo futuro, sua promessa de construção do socialismo. Que mais poderiam exigir?
Com as velhas virtudes abandonadas, vai embora também a consciência de culpa – e o neovirtuoso, com a maior naturalidade, subtrai-se aos julgamentos humanos. Aponte-lhe os pecados, e ele não verá em você senão a obstinação do Mal antigo que resiste ao advento do novo Bem. Já não há outro pecado no mundo senão o “reacionarismo”: quem está livre deste é puro por definição e eternamente imaculado e imaculável, faça o que fizer.
É por isso que o saldo de 100 milhões de mortos e a miséria indescritível criada pelas economias socialistas não abalam em nada a boa consciência esquerdista, imersa de uma vez por todas numa atmosfera embriagante de autobeatificação que transfigura em expressões supremas do Bem e do amor todos os crimes e desvarios: L'amour en action voilà la révolution.
É também por isso que com tanta desenvoltura a mais anticristã das ideologias se adorna do encanto residual de um cristianismo em dissolução. Esse fenômeno encontra sua cabal explicação, com séculos de antecedência, na fórmula de Agostinho: “Todos os vícios se apegam ao Mal, para que se realize; só o orgulho se apega ao Bem, para que pereça”.
É dos pastores desse novo culto que o rebanho foge, buscando abrigo nas igrejas evangélicas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário