O método para não entender nada
Olavo de Carvalho
4 Dezembro 2013
Para “pensar como” fulano ou beltrano, você precisa saber o
que eles sabem. Mas será possível e necessário, também, ignorar o que eles
ignoram?
Richard Rorty diz que, não havendo nenhuma verdade a ser
encontrada acima das divergências de opinião, a filosofia se reduz a um puro
divertimento, no qual, em vez de procurar saber se tal ou qual filósofo tinha
razão, você deve tentar apenas “pensar como ele”, como quem assiste a um drama
– ou o escreve -- e se identifica com os pontos de vista dos vários personagens
sem chegar a conclusão nenhuma. Ele ia até mais longe e afirmava que a mesma
tolerância e abstinência de julgamento deveria ser praticada com os grandes
agentes históricos, não havendo razão nenhuma para que algum escritor não
produza uma biografia de Hitler desde o ponto de vista do próprio Hitler,
representando mentalmente e sentindo, sem julgá-lo, o ódio anti-semita que o
movia.
O primeiro desses conselhos é um bom método para começar a
estudar filosofia, mas não constitui uma filosofia de maneira alguma, assim
como o segundo é um bom meio de iniciar uma investigação histórica, mas não de
concluí-la.
É evidente que, quando você estuda as doutrinas de um
filósofo, deve absorvê-las como se fossem as suas próprias antes de poder
julgá-las. Se você salta essa etapa, as idéias dele permanecem um corpo
estranho e ao julgá-las desde fora você não as atinge, apenas desliza sobre
elas. Mas, se, após ter feito um esforço para pensar como se fosse Descartes ou
Nietzsche você não é capaz de voltar a ser você mesmo e julgá-los desde o seu
próprio ponto de vista, fica também impossível julgar Descartes desde o ponto
de vista de Nietzsche, ou vice-versa, isto é, toda comparação se revela
inviável e a filosofia se reduz a uma coleção de discursos separados e
inconexos, um diálogo entre quem não ouve e quem não fala.
Em segundo lugar, para “pensar como” fulano ou beltrano,
você precisa saber o que eles sabem. Mas será possível e necessário, também,
ignorar o que eles ignoram? Por exemplo, algo que se descobriu depois que eles
morreram, e do qual você está bem informado. Se o mapa da sua ignorância não
coincide exatamente com o de um outro indivíduo, você jamais poderá pensar
exatamente como ele. Você pode, é claro, fingir que ignora o que ele ignora,
mas esse fingimento é algo que não estava no pensamento dele e que você está
introduzindo nele desde fora. Se, ao contrário, você realmente ignora o que ele
ignora, então não é da ignorância dele que se trata, e sim da sua própria, que
só por acaso coincide com a dele. E é loucura imaginar que a coincidência
fortuita de duas ignorâncias seja um bom método para compreender o que quer que
seja.
Chega a ser inacreditável que um filósofo de grande
reputação como o prof. Rorty não percebesse, de imediato, a completa
inviabilidade do método que sugeria.
O que cabe fazer em filosofia, o que no fundo todo estudante
acaba fazendo sem nem mesmo ter a intenção clara de fazê-lo, é tentar pensar
como o filósofo que você está estudando e depois, confrontando o que ele sabia
com o que você sabe, criar a sua própria opinião sobre as opiniões dele. (É
claro que existem maus estudantes -- muitos deles, decerto, professores -- que já
criam a sua própria opinião a respeito antes de deixar o filósofo terminar de
falar, e alguns até antes de que ele comece a falar. Mas “non raggionam da
lor”.)
Quanto aos personagens históricos, é claro que devem também
ser estudados desde suas próprias intenções e valores, “sine ira et studio”,
mas é impossível fazê-lo sem levar em conta que competiam com as intenções e
valores de outros personagens e que tanto as intenções e valores de uns quanto
as dos outros se recortavam sobre um horizonte de consciência (e de
inconsciência) que não é o do historiador que os está estudando. Este,
portanto, nada compreenderá do drama histórico se, desde os dados à sua
disposição, não puder distinguir, entre os personagens históricos, quais viam a
situação mais apropriadamente que os outros.
Posso, por exemplo, tentar me
colocar no lugar de Hitler e “sentir” imaginariamente o ódio que ele sentia aos
judeus, desde as razões que ele se apresentava para tanto. Mas devo levar essa
tolerância relativista ao ponto de ter de ignorar o que ele ignorava? Devo
fazer de conta que não sei que ele acusava os judeus de crimes que eles não
haviam cometido e enxergava neles defeitos de constituição cerebral que eles
não têm de maneira alguma? Posso até fingir isso, mas aí já não estarei pensando
como Hitler e sim como um dramaturgo que inventa um personagem chamado “Hitler”
sem ter em conta o Hitler da História. Pior ainda, se após mergulhar no
horizonte de consciência de Hitler não saio fora dele para julgá-lo de cima,
como posso distinguir se Hitler acreditava mesmo naquelas coisas ou apenas as
fingia, por sua vez, para tirar delas proveito político?
Tanto em filosofia quanto em historiografia, o método do
prof. Rorty só pode levar a um resultado: uma confusão dos diabos. Não espanta
que, havendo-o praticado por anos a fio, ele próprio chegasse a concluir que
nenhum problema tem solução e que a única coisa que o filósofo tem a fazer é
entregar-se ao divertido empreendimento de não entender nada.
Muito menos espanta que um seu discípulo local, um tipo
folclórico que se denomina “o filósofo da cidade de São Paulo” – como se não
tivessem sido da capital paulista os
maiores filósofos que o Brasil já teve, Mário Ferreira dos Santos, Miguel
Reale, Vicente Ferreira da Silva e Vilém Flusser --, após ter absorvido as
idéias do mestre, acabasse acreditando que a pedofilia é uma coisa boa e que,
historicamente, a prática generalizada do coito anal antecedeu a do coito
vaginal...
Publicado no Diário do Comércio.
TEXTO REPRODUZIDO DO SITE MÍDIA SEM MÁSCARA:
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