MARA RÚBIA, DOR E ESCURIDÃO |
Wilson Bicudo da Rocha que não se conformava com a separação. Numa
situação dessas o que o sujeito deve fazer?
Na mente perturbada de Bicudo a
resposta era clara como a luz da manhã: castigar Mara Rúbia, talvez destruir o
seu rosto, deformá-la, furar seus olhos para que nunca mais olhasse para
alguém, ou alguma coisa. Wilson tinha ciúme até das sombras.
O ciúme doentio, possessivo ,
intenso, é uma coisa terrível, avassaladora. Uma força gigantesca que deve
ficar martelando na mente do sujeito “controle, controle, controle”.
Quando pensamos que a maldade
possa ter limites, ela sempre avança mais um pouco, vai adiante, ou mais fundo.
Somos uma caixa preta.
Mara Rúbia contou à imprensa que
com o passar do tempo ele foi se mostrando cada vez mais ciumento e possessivo,
mais controlador.
Até que ela não agüentou mais e
fugiu, voltando para a casa dos pais.
Mas ela tem uma criança de sete anos de idade com Bicudo, e
acabou voltando. Mas a sua vida era um inferno, ele controlava até as
suas roupas íntimas.
WILSON BICUDO, 30 ANOS, CIÚME INCONTROLÁVEL |
No dia 29 pela manhã, por volta
de onze horas, ela voltou para casa e foi apanhada de surpresa; Wilson a
esperava dentro de casa. Ele a agrediu, segurou pelo pescoço, a enforcou com um
fio de telefone. Ela desfaleceu diversas vezes.
Dessa vez ela percebeu que a
coisa era muito séria. Ela contou à imprensa que ele sempre a ameaçava por telefone, nunca diretamente. E sempre
desmentia as ameaças se ela falasse nisso.
Mas agora ela ficou com medo,
muito medo. Ele sempre dizia ser capaz de desfigurar seu rosto, cortar sua
orelhas, e outras barbaridades.
Mas agora ela sentiu a fúria, o ódio, o descontrole de
Wilson. Imobilizada, ela percebeu que ele poderia ir longe demais. Ele pegou
uma faca de cozinha e, um a um, ele colocou a ponta da faca e espetou nos olhos
de Mara Rúbia.
Uma dor horrível, lancinante, e a
escuridão.
De um momento para outro Wilson a
deixou sem visão.
Um sujeito frio, possessivo,
violento, em nada diferente dos casos que lemos sobre os homens ciumentos e
vingativos que cortam o nariz, as orelhas ou
jogam ácido no rosto de suas mulheres em diversos países islâmicos.
É como se eles fossem donos da
pessoa, proprietários daquela vida, senhores de sua vontade.
E sempre, sempre, caímos no
perfil do drama suburbano rodriguiano:
“Se não podes ser minha, não será de mais ninguém”. E Mara contou que Wilson
sempre deixou isso bem claro.
SOMBRAS E ESCURIDÃO
Mara Rúbia perdeu a vista
direita, talvez os médicos consigam preservar uns 25 por cento da esquerda. Mas
não há certeza, os ferimentos foram profundos. Ela sofre, sente dores, perdeu a
vontade de alimentar-se.
A situação de alguém que fica
cego de uma hora para outra é muito difícil; da luz para a escuridão
permanente, ou a bruma, a névoa cinzenta, ou manchas coloridas. O mundo, de
familiar passa a ser hostil, desconhecido, perigoso, até.
Aquele que nasce sem a visão ou,
como o poeta Borges, a perde lentamente durante os anos, tem a chance de
adaptar-se melhor. Adapta o tato, a audição, o olfato mesmo. A cegueira
repentina é um choque. Mara precisará de muita força de vontade e apoio.
Agora ela espera ficar com a
criança que está com a família de Wilson, que está fugido e sendo procurado
pela polícia. Talvez continuar a criar o filho seja um alento em sua vida.
E agora, para quê servirão os
espelhos?
TUDO QUE É PRÓXIMO SE AFASTA (BORGES)
Trecho de “O Cego” (1972)
"Despojaram-no do tão vasto mundo
Dos rostos, que não são o que eram antes,
Das vizinhas ruas, hoje distantes,
E do côncavo azul, ontem profundo.
Dos livros só lhe resta o que reserva
A memória, essa forma de olvido
Que retém o formato, não o sentido
E que míseros títulos conserva.
O desnível espreita. Cada passo
Pode bem ser a queda. Sou o lento
Prisioneiro de um tempo sonolento
Que não marca sua aurora nem ocaso.
É noite. Não há outros. Com o verso
Devo lavrar meu insípido universo.
Elogio da sombra
Jorge Luis Borges
A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direção à planície incessante,
voltou a ser La
Recoleta, o Retiro,
as imprecisas ruas do Once
e as precárias casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou.
(FOTOS TV GLOBO e Arquivo pessoal)
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