SONHO MAU
Olavo de Carvalho
2 Julho 2014
“Não há como provar a liberdade
senão exercendo-a, mas colocá-la em dúvida é já abster-se de exercê-la,
provando portanto sua inexistência mediante uma profecia auto-realizável.”
Em qualquer grupo social pode-se
avaliar sem muita dificuldade se ali predominam a percepção alerta, a presteza
e criatividade das reações, ou o apego indolente a chavões e frases feitas que
se repetem como mantras enquanto a realidade vai correndo, mudando e passando
como um trator sobre a multidão de sonsos.
Muitas previsões, dizia Thomas
Mann, são enunciadas não porque vão se realizar, mas na esperança de que não se
realizem. Todas as que fiz, especialmente as mais alarmantes, foram assim. Com
uma diferença: as previsões sempre se realizaram, a esperança nunca.
Nos assuntos humanos, a certeza
absoluta é geralmente uma utopia. O máximo que se alcança é uma probabilidade
razoável. E o culto devoto que o homem contemporâneo consagra aos números não o
levará mais longe: uma probabilidade, calculada até os centésimos de
milionésimos, continuará sempre sendo o que é -- uma probabilidade, não uma
certeza.
No entanto, continua válido o
preceito de que a exatidão de uma ciência se mede pela sua capacidade de fazer
previsões corretas. Nas ciência humanas, e especialmente na ciência política, a
previsão deve sempre assinalar as variáveis que podem modificá-la no curso do
processo. Muitas dessas variáveis dependem da criatividade, da iniciativa e da
coragem dos personagens envolvidos. Se as previsões mais deprimentes se
realizam com exatidão quase matemática, isto se deve mais à ausência desses
três fatores do que aos méritos científicos de quem as enuncia.
Numa apostila já velha, que nunca
tive a ocasião de corrigir para publicação, expliquei que a liberdade é uma
propriedade vital da psique humana, mas que esta não a possui como um dom
perfeito e acabado, e sim apenas como uma possibilidade que de certo modo se
cria e se amplia a si mesma na medida em que se assume e se exerce. Por isso é
que a famosa controvérsia de determinismo e livre arbítrio não tem solução
geral teórica: esses dois fatores não pesam uniformemente em todas as vidas,
mas se distribuem de maneira desigual conforme um jogo dialético muito sutil
que varia de indivíduo para indivíduo, de situação para situação, de caso para
caso.
Não há como provar a liberdade
senão exercendo-a, mas colocá-la em dúvida é já abster-se de exercê-la,
provando portanto sua inexistência mediante uma profecia auto-realizável.
Inversa e complementarmente, a
própria psique se torna rala e evanescente quando, por abdicação voluntária ou
sob a pressão de condições adversas, a liberdade cede o passo à intervenção de
fatores “externos”: a pura fisiologia, os hábitos inconscientes, o jogo das influências
ambientais, o acaso, etc. Numa situação extrema, já não há mais atividade
psíquica livre: a psique torna-se o reflexo passivo e mecânico de tudo quanto
lhe é estranho.
Essa distinção aplica-se aos
indivíduos como às sociedades. Em qualquer grupo social pode-se avaliar sem
muita dificuldade se ali predominam a percepção alerta, a presteza e
criatividade das reações, ou o apego indolente a chavões e frases feitas que se
repetem como mantras enquanto a realidade vai correndo, mudando e passando como
um trator sobre a multidão de sonsos.
Depreciando instintivamente as
mudanças e diferenças, a mente letárgica apega-se à “heurística disponível”,
que o manual de psicologia forense de Curtis R. Bartol, muito usado nos EUA,
define como um atalho mental construído com os fatos mais vulgares e acessíveis
– em geral os fatos repetidos pela mídia --, simulando uma explicação.
É assim que os riscos e ameaças
mais graves e iminentes passam despercebidos sob uma afetação de segurança
tranqüilizante. E foi assim que os planos do PT para a implantação do comunismo
no Brasil, registrados nas atas de assembléias do partido, repetidos nas do
Foro de São Paulo e insistentemente explicados nos meus artigos e conferências,
foram solenemente ignorados como se fossem meras tiradas verbais sem a menor
conseqüência, até que agora podem ser postos em prática diante dos olhos de
todos, com a certeza de que a o povo e as elites, degradados e estiolados por
décadas de indolência mental e repetitividade mecânica, nem saberão como
reagir.
Não é preciso dizer que,
deteriorada num grupo humano a capacidade de percepção rápida e reação
criativa, o curso das coisas vai se tornando cada vez mais previsível graças ao
império geral da passividade mecânica. O que era apenas uma probabilidade,
manejável pela livre vontade humana, torna-se o cálculo matemático de uma
fatalidade.
Pela milésima vez: Quando um
homem normal diz “sociedade civil”, ele designa com isso a totalidade das
pessoas dotadas de direitos civis e políticos. Quando um comunista usa o mesmo
termo, ele sabe que os profanos o ouvirão exatamente assim, mas que os
iniciados saberão perfeitamente que se trata apenas de um reduzido círculo de
organizações e movimentos criados pelo Partido para fazer a parte suja do serviço
sem comprometê-lo diretamente.
Na estratégia comunista, trocar a
representação eleitoral pelo governo direto dessas organizações e movimentos é,
desde há mais de um século, a virada decisiva, o “salto qualitativo” que, após
uma longa acumulação de subversões e corrosões, marca a passagem de qualquer
regime para uma ditadura socialista.
Para quem quer que conheça a
história do comunismo, isso é uma obviedade patente, mas quem está acostumado a
pensar segundo a “heurística disponível” da mídia usual, quem se recusou por
mais de vinte anos a enxergar o que se preparava, talvez não venha a enxergá-lo
nem mesmo depois de realizado. Muitos
irão para o Gulag ou para o “paredón” jurando que é apenas um sonho mau.
Publicado no Diário do Comércio.
TEXTO REPRODUZIDO DO SITE MÍDIA
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